segunda-feira, 29 de junho de 2009

135. A Inovação Suprema

Naquele dia, naquela hora, naquele instante, há trinta mil anos, no recinto daquela caverna, aquele recém-surgido primata, de crânio volumoso e rosto harmonioso, edicava-se ao passatempo original e prazeroso de desenhar com os dedos, na argila úmida da parede, a figura do seu animal predileto: o bisão.
É um momento indelével na história do cosmos, como nós os humanos a elaboramos, porque aquele desenho vai tornar-se conhecido e permanecer milênios afora, constituindo, destarte, a mais antiga manifestação pictórica de que um novo ser vivo, singularíssimo e extremamente competitivo, surgira para dominar o planeta.
Ele vai desenvolver essa habilidade, aprecia-la e a ela dedicar-se com freqüência tanta que, alguns milênios depois, irá adornar de pinturas toda uma caverna de Lascaux. Essa caverna é conhecida como a capela sistina do homem pré-histórico.
Até aquela época, aquele primata, como qualquer outro animal, tratara apenas de sua sobrevivência: colhia frutos, caçava animais, pescava e defendia-se contra o ataque de outros animais. Mas, naquele memorável e remoto passado, ele adotou um comportamento totalmente original. Ele se interessou por uma porção específica da natureza. Deslocou-a do todo. Contemplou-a internamente. Admirou aquela imagem. Extasiou-se com ela. E reproduziu-a na parede de uma caverna de Altamira.
Um antepassado do homem, o homo erectus, já havia produzido, faz um milhão e seiscentos mil anos, valiosa descoberta: o machado de mão, um instrumento de defesa e de ataque, um instrumento de múltiplas utilidades para a sobrevivência individual e da espécie. Mais importante ainda foi, em época mais recente, há quinhentos mil anos, para a supremacia da futura espécie humana, a invenção do fogo.
Essas inovações, porém, estavam ligadas aos comportamentos motivados pelo interesse da sobrevivência. O fogo aquece o ambiente, protege o animal contra o frio e permite que ele sobreviva em regiões da terra mais distantes do equador e mais próximas aos pólos. Assim, usando o fogo, ele pôde ampliar seu habitat para além da África, e habitar a Europa e a Ásia. O homo erectus nasceu um animal equatorial. Com a invenção do fogo, fez-se um animal terrestre.
Mas, o homem, a espécie humana, que a natureza inventou há duzentos mil anos, esse então novo produto da evolução das espécies, deixou comprovado naquele instante, há trinta mil anos, na caverna de Altamira, atualmente norte da Espanha, que era capaz de agir por simples prazer. Ele já vinha deixando rastros de que se comprazia em adornar seus objetos de caça e pesca. A nova espécie iniciava assim a extraordinária atividade acumulativa da cultura artística e da cultura em seu amplo sentido.
Milhares de anos transcorreram, até que o homem, padecendo certamente de carência de alimentação, decidiu, há dez mil anos, em regiões hoje identificadas como o Oriente Médio, abandonar o estilo de vida de coletor e caçador, e adotar novo comportamento no seu relacionamento com a natureza, iniciando a produção de alimentos. Ele passou então a viver em aglomerados humanos, familiares e tribais. Promoveu, naquela época, a Revolução Agrícola ou Revolução Neolítica, cultivando vegetais como o trigo e criando animais como a ovelha, a cabra, o boi e o cachorro. Logo em seguida, descobriu a utilidade dos minerais para ferramentas e para guerra, e lançou-se à atividade extrativa do cobre. Foram os primeiros passos rumo à produção industrial também. Ampliava a cultura tecnológica.
A população humana expandiu-se. A produção agrícola aumentou. Tornou-se, assim, viável e interessante, quatro mil anos depois, a convivência em cidades. Há seis mil anos, portanto, nas primeiras cidades de que se tem notícia, localizadas nas terras hoje denominadas de Mesopotâmia, e sob a proteção dos deuses, o homem costumava medir o tempo e contar os objetos. Até mesmo avaliava seu patrimônio, contabilizando, de certa forma, as propriedades. Identificava e promovia os costumes e as normas que pensava mais apropriados à vida em comunidade, e os transmitia às novas gerações. Começou a comunicar-se pela escrita, tornando-se o animal que lê e escreve. Entendia vantajosa para o aglomerado urbano a existência de uma liderança, de um comando, de um poder. Interessava-se por construir moradias mais robustas, mais protetoras, mais confortáveis e mais prazerosas. Eram os rudimentos da cultura matemática, da cultura arquitetônica, da cultura do conhecimento, da cultura científica, da cultura ética, da cultura jurídica, da cultura religiosa e do próprio Estado. E com a escrita surgiu a História também.
O homem urbano é o homem culto, é o homem civilizado. Aristóteles disse que o homem é um animal racional. Talvez melhor seja conceitua-lo como o animal cultural. São esses comportamentos, onde os aspectos das motivações de sobrevivência se acham tão esmaecidos, que tornam o homem um animal diferente, especial, superior mesmo. São essas atividades mentais de ordem superior, de natureza extremamente original, que mais caracterizam o homem e o erigem no mais poderoso animal terrestre. Foram essas características que naturalmente o selecionaram para sobreviver. Com a cidade e com a escrita, nasceu o homem civilizado, surgiu a civilização. Antes, era a barbárie dos aglomerados de agricultores. E antes destes, era a selvageria dos grupos coletores e caçadores.
E a fala? Quando apareceu a fala? Todo ser é comunicação, é interação. Os átomos, os elementos químicos e as moléculas existem e interagem sob os efeitos das forças de atração e repulsão. O organismo vivo é maravilhoso complexo de interações internas e com o meio ambiente. Mas, a comunicação assumiu nos animais a forma de um processo neural e neles elevou-se até aos rudimentos das atividades neurais superiores. Supõe-se que o homo erectus, antecessor da espécie humana, já se comunicava pela fala. Mas, é no animal homem, o ápice do encadeamento das transformações evolutivas, que se assiste à assombrosa comunicação pela fala, nele alçada a um sistema flexível e claro de transmissão de mensagens, apto até mesmo para irradiar os mais elevados níveis de elaboração cultural, como a ciência e a ética. O homem é um animal que fala, escreve, lê e calcula. O homem é um animal cultural.
O homem é a mais recente, a mais assombrosa e a mais misteriosa invenção da natureza. Há duzentos mil anos ele surgiu. Em cem mil anos, ele sobrepujou todos os outros animais terrestres. Ao longo de cem mil anos, ele vem interagindo com a natureza terrestre, moldando a Terra à sua própria feição. Vem transformando-a. A Terra é o planeta do animal homem. Ele já projeta até ampliar o seu domínio e a sua atividade para outros planetas.
Houve a era dos microorganismos. Houve a era dos insetos. Houve a era dos répteis. Agora é a era do Homem, a invenção suprema. O homem é o animal do conhecimento e da comunicação: extrai informação, conserva-a e transmite-a. O homem é um animal racional: elabora a informação e amplia o conhecimento. O homem é um animal social: usa a informação para a sobrevivência do indivíduo humano e da espécie humana. O homem é um animal cultural: conserva o conhecimento, expande-o e transmite-o para as gerações posteriores. O homem é um animal que fala, escreve, lê e calcula.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

134. É Isso Mesmo?!...


Adentro o shopping da Rua Figueiredo Magalhães. Na minha frente, segue um rapaz vestindo calça jeans azul e camisa esporte de cor preta, onde, nas costas, se lêem estas três frases: Nasci na guerra. Criei-me na batalha. Vivo na revolta.
Essa mensagem me ligou à reportagem, que acabara de ler nos jornais e a que assistira na televisão, daquele cidadão que ensinava ao filho criancinha seqüestrar, violentar e matar. Também correlacionei com outra reportagem televisiva sobre um assalto a um banco em São Paulo para retirar um terminal de caixa, realizado por quadrilha composta de vinte bandidos, munidos de marretas e armados de fuzis moderníssimos. Ouço falar de milícias, comandadas por ex-policiais, alguns deles ocupando postos políticos na cidade e no Estado. Vejo-lhes a imagem nos jornais e me pergunto: como se pode entregar o governo da cidade e do Estado a figuras que exalam ignorância e violência?!... E por último, a memória me transportou para as notícias horripilantes a respeito das práticas no Senado desta República, que conhecido senador aprecia designar como a instituição dos Pais da Pátria Brasileira!... E também para o Palácio do Planalto ligado a tantas pessoas mal faladas!... E meu pensamento se estendeu até os tribunais, cheios de apadrinhados, velados sob silêncio sepulcral e protegidos pelo tabu da infalibilidade. Esta, por longa sequência de décadas, eu entendi existir só na pessoa papal...
Constato que, no Brasil, vasta camada da população, composta indistintamente de pessoas ricas e pobres, instruídas e ignorantes, povo e governantes, adultos, jovens, adolescentes e até crianças, tem a mentalidade da marginalidade. O tecido social da nação brasileira está esgarçando-se. Mais. Estou suspeitando que no Brasil, de hoje, existe uma instituição marginal e informal, que educa as crianças, os adolescentes e os jovens para a marginalidade e o crime!
Será que aquele jovem nasceu realmente na guerra? Aprendi que os gametas masculinos e femininos não se atraem nem se repelem. Eles simplesmente se unem por acaso. A fecundação, a nível de gametas, é encontro fortuito. E nesse encontro eles podem unir-se, porque eles têm conformação apropriada para o encaixe. Esse encontro também é obra de parceria. Um gameta se encontra com o óvulo, depois que ele e os milhões de companheiros, lançados pelo homem no corpo da mulher, conseguiram destruir duas ordens de barreiras, que protegem o óvulo. A fecundação é obra conjunta de milhões de gametas. Um gameta sozinho não seria capaz de produzir esse encontro fortuito! E qual gameta consegue penetrar no óvulo? Simplesmente o mais sortudo!... O gameta que foi sorteado!... A fecundação é uma guerra ou uma dádiva? Uma coisa parece certa: não é uma obra individual, de um herói único. É resultado de uma parceria, que culmina na premiação aleatória de um único gameta!
O útero, onde o feto se desenvolve, dizem os biólogos, é ambiente cibernético, isto é, tem a propriedade de autocorrigir inúmeros defeitos, inúmeros desvios da normalidade, de modo que nasça um indivíduo sadio. Por isso, dizem, a tecnologia ainda não conseguiu produzir o útero artificial. Quando isso acontecer, então, a geração humana e a família ainda mais se modificarão. E o intercurso sexual tornar-se-á, sem dúvida, liberto do estresse da fecundação indesejada. Prazer sexual e maternidade se dissociarão. A procriação será um ato muito mais consciente e específico. Assim, a gestação humana é longo e meticuloso processo de produção de um ser perfeito, capaz de sobreviver no ambiente externo. Merece realmente o adjetivo maternal. É uma sequência persistente de desvelo para entrega ao Universo de um ser diferente, único, capaz de contemplá-lo, entende-lo e dele usufruir. Aquele jovem, portanto, engana-se. Ele foi gerado em ambiente de competição e parceria. Não foi em ambiente de guerra.
E, ao nascer, a sociedade, certamente, o havia envolvido num ambiente de cuidados e desvelos: a clínica equipada com a tecnologia médica moderna, a assistência à gravidez da mãe, corpo de profissionais, médico e de enfermagem, no momento do parto. Momentos depois, o instinto de sugar encontrou o alimento nos seios maternos. Não! Aquele jovem não nasceu na guerra, nem mesmo isolado. Nasceu na sociedade, na parceria, no intercâmbio social. Seria mais racional concordar com a prosopopéia de Sócrates: Então, após dever-nos o nascimento, o sustento e a educação terás a petulância de argumentar que não é nosso filho e servidor da mesma maneira que teus pais?
Até acho que o primeiro ato social da espécie humana foi a atração sexual entre o macho e a fêmea nos primórdios da Humanidade, o primeiro cruzar de olhares, no primeiro encontro entre os dois sexos, dádiva da natureza para produzir a sociedade. Ou talvez o estender da mão do macho, oferecendo à fêmea o alimento que ele via ela procurava, mas não podia alcança-lo. Não! A Humanidade não nasceu na guerra. Ela só existe e sobrevive, porque existe sociedade!
Aquele jovem pensa também que foi criado na batalha. Seria a batalha dos fundamentalistas palestinos e judeus? Ou dos morros, da periferia e das ruas do Rio de Janeiro e São Paulo. Maquiavel, no século XV, contrariando a tradição cristã que afirmava que o Príncipe é uma predestinação divina, disse entender que o Príncipe é resultado da conjunção da sorte com dons pessoais, sobretudo de crueldade e dissimulação. A crueldade deve ser tal que extermine todos os demais pretendentes ao poder, todos os inimigos, com toda a descendência. O Príncipe deve ser dadivoso para com todos os seus amigos e correligionários. Mais importante, todavia, que ser cruel e benemerente, é parecer ser cruel e benemerente. A dissimulação deve ser tal e tão importante que mais vale parecer cruel e benemerente que, de fato, ser. Parecer é mais importante que ser. Parecer cruel atemoriza os inimigos, sem necessitar praticar a crueldade. Parecer benemerente conquista os súditos e os amigos, sem necessitar praticar a benemerência. Quanto estilo de conduta política e individual atual me parece produto escarrado e cuspido dessa mente medieval de Maquiavel! Maquiavel formulou a teoria do Príncipe-Estado com base no que ele observava, naqueles tempos medievais, mil anos de conquista de terras, de servidão humana e de guerras, poucos séculos depois das Cruzadas. O castelo é, sem dúvida, o símbolo mais sugestivo daqueles tempos: defesa contra o inimigo e segregação plutocrática.
Nietzsche foi além de Maquiavel. Afinal de contas, ele foi filósofo do final do século XIX, quinhentos anos de formação dos impérios, através de pirataria, genocídio e destruição de civilizações. O filósofo da época da explosão do capitalismo, quando o patrão sugava a energia vital dos operários nas fábricas e exterminava a população nas periferias das cidades poluídas. Época em que Herbert Spencer vaticinava o advento da nova espécie humana, a espécie humana dos capitalistas, que começavam a usufruir qualidade de vida inimaginada, e conseguida com a espionagem, as maquinações, as trapaças, os furtos e até o homicídio. Herbert Spencer foi o sociólogo do capitalismo. Nietzsche foi o seu filósofo, o filósofo da Belle Epoque. A época cujos símbolos poderiam ser o telefone, o telégrafo, o gramofone, o cinema, a ferrovia, o vapor, o automóvel e a estação de águas minerais. Só existe a vida terrena. Além desta existência é o nada. A vida é a vontade de poder, de dominação. É a explosão das forças desordenadas e violentas das paixões. A vida é incerteza e perigo. A vida é a arena que reúne vencedores e vencidos. Vencedores que podem tornar-se vencidos. E vencidos que querem tornar-se vencedores. A vida é guerra. É luta. A vida é individualidade, liberdade e vontade. Não existem normas nem ética. O Bem é o que o indivíduo humano quer e pode fazer. As virtudes dos vencedores, do super-homem, são o orgulho, a alegria, a saúde, o amor sexual, a coragem, o destemor, a persistência, a vontade inquebrantável, o conhecimento, a ambição desmedida, a vontade de poder, de dominação. O super-homem é aquele indivíduo livre, que faz tudo o que quer e pode, tudo usufrui sem consideração com os outros e até à custa dos outros. Não se submete ao jugo de leis, tradição, costumes e cultura. Ele é criatividade, invenção e novidade. O Cristianismo e a Civilização são máscaras que escondem a face verdadeira da vida. Eles consagram as virtudes dos vencidos: a humildade, a caridade, a compaixão, a paciência, a conformidade com o sofrimento, o altruísmo, o perdão, a obediência.
Curioso é que, exatamente no século XVIII, o século precedente ao de Nietzsche, Adam Smith, o criador da ciência econômica, que é tão vilipendiado no Brasil de hoje, teve intuições tão fecundas que mantêm funcionando, ainda neste século XXI, a economia de mercado, responsável pela sobrevivência de mais de sete bilhões de indivíduos humanos atualmente: o indivíduo humano está sempre procurando aproveitar a vantagem que se lhe apresenta; especializar-se em fazer aquilo que se faz com maior eficiência é vantajoso, porque se produz o máximo que se pode; procurar pelos outros indivíduos humanos e trocar com eles os produtos do trabalho especializado é vantajoso para o indivíduo e para a coletividade humana, já que essa troca fornece a todos o máximo de bens (a maior riqueza) que podem obter.
Mas, ele colocava uma condicionante (os participantes do mercado devem ser tantos que nenhum detenha o poder de açambarcá-lo) e fazia uma observação (cuidado com o conluio dos negociantes). Adam Smith, ao final, sentia que o mercado deve orientar-se para a igualdade dos parceiros e para a democracia, ao mesmo tempo que pressupunha participantes guiados por uma mente ética, infensos à pretensão de melhorar de vida prejudicando os parceiros. A doutrina econômica de Adam Smith é de sutil e primorosa concepção social! Ela tem subjacente interessante filosofia social.
Todo ser vivo é um repositório de informações. O ser vivo é produto do meio ambiente, ele tem um nicho ambiental que o faz brotar e lhe favorece a sobrevivência. No indivíduo humano, esse aparelho de obter informações e elaborá-las, através das sensações, emoções, sentimentos, paixões, percepções, idéias, julgamentos, raciocínios, alcança o grau mais elevado de perfeição observado na Natureza. A pele, estimulada pela energia mecânica, percebe a presença dos objetos: sua resistência, sua aspereza, seu desnível, suas dimensões, a energia cinética dos átomos através da temperatura, a vantagem e a desvantagem através do bem-estar ou do sofrimento causado pelo contacto, etc. Como a pele, assim funcionam os outros órgãos: o da vista, o da audição, o do paladar e o do odor. Todos os órgãos obtêm informações do exterior e do interior (como a fome e a sede) transformando determinado tipo de energia em energia bioquímica e esta em produtos mentais que formam o mapa do Universo de cada indivíduo humano. Só existe um Universo físico. Este jamais conhecido como ele de fato é, por isso mesmo, porque conhecido através do mapa mental. Existem, porém, tantos universos conhecidos quantos indivíduos existem. E todos estes universos são mapas do Universo físico, cada um conhecido pela mente de cada indivíduo que o fabrica.O mais curioso é aquilo que apelidamos de conhecimento das coisas. A primeira vez que a energia externa, proveniene de uma coisa com que nos deparamos, atinge um dos nossos órgãos da sensação, formamos uma imagem dela e guardamos nos arquivos mentais. Ela pode ter sido até uma imagem agradável ou desagradável. Sempre foi uma surpresa, na primeira vez. Daí em diante, sempre que nos deparamos com coisa parecida, a imagem que dela formamos comparamos com a imagem do arquivo e a reconhecemos. É um cachorrinho, engraçado, boa companhia, bom passatempo. Agrada-me estar com ele. É um leão feroz, forte, que se nutre de animais como eu. Mete medo, é perigoso, fujo dele. Outra capacidade extraordinária da mente humana é prever o futuro, tirar conseqüências. Outra qualidade importantíssima é fabricar mapas pormenorizados da estrutura e do funcionamento das coisas do Universo: a ciência, as teorias. E, finalmente, a capacidade de manipular o Universo, de modo a adaptá-lo a fornecer mais recursos para sobrevivência de mais qualidade do indivíduo humano. A mente humana é uma fábrica de sobrevivência de mais qualidade do indivíduo humano. Ela obtém informações do meio ambiente, armazena-as, elabora-as, manipula-as e comanda condutas humanas, que possam extrair do meio ambiente, tal qual ela o concebe (isto é, conforme é por ela gerado mediante essas informações) os recursos para sobrevivência, a mais longa possível e a melhor possível.
A plasticidade é outra maravilhosa qualidade da mente humana. Neurocientistas e psicólogos há, que dizem até que nascemos com a aptidão de tudo aprender, de ser qualquer coisa. As vivências do dia a dia é que vão formatando a nossa mente, constituindo a nossa personalidade e o nosso mapa mental, o nosso Universo. Eu poderia ter sido um Bach, ou um Einstein. Bastaria para tanto simplesmente que eu tivesse tido as mesmas e todas as experiências que eles tiveram. Será?!
É comumente aceito que já houve várias espécies humanas. A mente humana foi evoluindo no correr das eras e dos milênios. É bem provável que há duzentos mil anos, os nossos antepassados não distinguiam bem um homem de um urso. Tem-se a impressão de que nos primórdios da Humanidade, os indivíduos humanos entendiam que animais poderosos, como o leão, o tigre, a águia seriam mais poderosos que os homens. Da mesma forma, os astros. Esses animais e os astros seriam até deuses. Civilizações antiqüíssimas praticavam a antropofagia: comiam-se os antepassados idosos, os filhos e faziam-se guerras para se alimentar com a carne dos inimigos vencidos. Matar outro indivíduo humano não era criminoso nem eticamente errado. Os códigos proibindo o homicídio são instituições recentes da cultura humana. A mente individual evolui, a cultura humana evolui e a sociedade humana evolui. A mente individual contribui para formar e transformar a cultura e a sociedade. E a cultura e a sociedade contribuem para formar e transformar a mente humana individual. O homem é o produto do meio, da cultura. O indivíduo humano é o espelho da sociedade, produzido pela cultura dessa sociedade, pela educação, porque o Homem é um animal social.
Não acredito que a vida tal qual imaginaram Maquiavel e Nietzsche seja a melhor possível. Acredito que Adam Smith tenha tido a percepção mais inteligente. O homem conseguirá sobrevivência e de mais qualidade, desde que saiba viver em sociedade, civilizando-se. Mas, o indivíduo humano se civiliza através da educação.
Acho que o Brasil vai muito mal, porque não tem a mínima preocupação com suas escolas, a instituição que a sociedade usa para infundir a cultura na mente das crianças e dos adolescentes. O Brasil caminha para um futuro negro! Educação já. Educação de qualidade para que se forme uma sociedade de excelência!

sexta-feira, 5 de junho de 2009

133. A Economia Humanista


Paul Krugman, logo no início de seu livro Introdução à Economia, ensina que a economia de mercado é democrática e liberal. Nada pode ser mais liberal e democrático do que a economia de mercado. Nela todos se apresentam como são, produzindo o que sabem e, se forem inteligentes, produzindo o que sabem e do que gostam. Todos também nela se apresentam escolhendo o de que necessitam e do que gostam. Ela abarca os sete bilhões de pessoas que existem sobre a Terra. Ela é o resultado de todos os indivíduos humanos na busca de sua própria vantagem. Enquanto houver vantagem, cada indivíduo humano produz, troca e consome. Todos nos governamos pela “lei do Gérson”.
E, por isso mesmo, ela é extraordinariamente mágica. Ela transforma o egoísmo em altruísmo, o individual em social. Trata-se da famosa mão invisível de Adam Smith. Cada ato meu, cada produção minha e cada consumo meu se acham condicionados pelos atos, produção e consumo de toda a população mundial e a eles ajustados. A economia de mercado é formada por esses bilhões de mônadas individuais, que interagem e se completam na busca dos próprios interesses. São bilhões de vetores rumando na direção do próprio interesse e, por isso, resultando na satisfação do interesse geral, isto é, de todos. Nada há de mais social do que a dinâmica da economia de mercado.
Paul Krugman, perfilhando o pensamento da economia liberal, contrapondo-se a tantos altissonantes líderes políticos nacionais, logo demonstra que a economia de mercado é o instrumento mais eficiente para conciliar liberdade com riqueza. Cada indivíduo humano produz o que sabe e pode fazer e até gosta de fazer. E cada indivíduo humano consome o de que precisa e gosta e o que quer. E há algo mais, também admirável: o mercado garante o escoamento da produção e o abastecimento do consumo. Isso constata-se na realidade diária das cidades e das casas dos grandes países desenvolvidos.
O estado de equilíbrio de uma economia define-se exatamente por isso, a saber, pelo fato de que nele todas as oportunidades de melhorar a situação de cada indivíduo foram realizadas. Não há mais o que melhorar!
Na economia de mercado há lugar para todos os indivíduos. Nada mais democrático. Nela há lugar para o cientista Albert Einstein, para o empresário Bill Gates, para os jogadores de futebol, Ronaldo Fenômeno e Ronaldo Gaúcho, como também para a professorinha daquela cidade do Maranhão que ensina na sua casa de taipa e teto de palha a crianças desnutridas, para a faxineira que limpa os banheiros da rodoviária de Parnaíba e para o jogador de futebol de Barras que recebe apenas uns minguados dez reais quando há uma partida de seu clube. E nada mais socialmente justo: cada um recebe segundo produz. A cada um o seu!
E os leitores estão horrorizados com esta última ilação que, por justiça se diga, Paul Krugman não a fez. Estão horrorizados em razão da cultura que construiu suas mentes, da civilização dos tempos modernos. Quem deveria ganhar mais, Albert Einstein ou Ronaldo Fenômeno? Sabe por que Ronaldo Fenômeno ganha infinitamente mais que Albert Einstein? Porque nesta nossa civilização se dá mais valor à diversão do que à ciência. Sabe por que uma modelo internacional ganha mais do que Albert Einstein? Porque nesta nossa civilização se dá mais valor à beleza e atração feminina de uma modelo do que à ciência.
A Civilização Ocidental, durante quase dois milênios, aceitou tranquilamente que Deus criava uma pessoa para ser rei, um grupo de famílias para ser nobre e rica, a grande maioria das pessoas para serem pobres e trabalhadoras, e até muitas pessoas para sofrerem fome e doenças. Até que Maquiavel imaginou que o rei era aquele indivíduo de uma sociedade que tinha poder de dominação e sorte. Era rei quem tinha poder de atemorizar. Esse poder de dominação envolvia muitas facetas. As principais dentre elas eram a crueldade extrema e a dissimulação. O príncipe era aquele que tinha mais poder de atemorizar. Já Etienne de la Boétie pensava que só existia o rei porque o povo se lhe submetia por comodismo ou covardia. O direito decorreria da força. Nietzsche, no final do século XIX, imaginou a Humanidade como numa arena de indivíduos desconhecidos, digladiando-se, vivendo o momento presente, e simplesmente interessado no próprio triunfo e destruição dos outros. Não existe sociedade. Existem arena e lutadores. Existem vencedores e vencidos. A lei é o poder de dominar e destruir os outros.
Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau, bem antes de Nietzsche reinventar o valor da violência, não aceitaram que o direito tenha origem na força. Para eles o poder político é um poder gerado no seio da convivência dos indivíduos humanos. Esta mentalidade vem-se expandindo entre as pessoas instruídas. É, afinal, a mesma percepção do economista: a convivência dos indivíduos humanos permitiu a percepção de que o entendimento e a cooperação contribuem para o bem-estar de todos. O Estado, portanto, seria uma instituição criada pelos indivíduos humanos para manter a harmonia entre os indivíduos, o entendimento, o clima onde brota o sócio, o companheiro, aqueles que convivem tão intimamente que produzem juntos o mesmo pão, que comem sentados à mesma mesa.
Eles entendem o Estado, como resultado de uma convenção humana. Os indivíduos humanos criam uma instituição para administrar a res publica, isto é, tudo aquilo que é do interesse comum de todos os cidadãos, tudo aquilo que não é res privata, isto é, o interesse exclusivo de cada pessoa. Assim, cada indivíduo cuida de conquistar uma vida de qualidade. Mas, nos casos de litígio entre os indivíduos, quem decide é o Estado: a normalidade da convivência entre os cidadãos é do interesse de todos. Noutras palavras, na civilização moderna, o poder político é entendido como uma convenção.
Rousseau entende que nessa convenção, fundamento da sociedade, todos se despojam de suas diferenças, e se apresentam em pé de igualdade. Todos detêm os mesmos direitos e todos se obrigam aos mesmos deveres. Não há senhor nem súdito. Ou melhor, todos são soberanos e todos são súditos.
Aliás, a civilização atual pensa que até a ética é uma convenção. Nos tempos primitivos da espécie humana, pensa-se atualmente, a espécie humana não falava nem tinha noção de incesto. Não tinha noção de leis. A ética e a lei são criações da espécie humana atual. Há sociedades antigas, onde, atingida certa idade, os pais eram mortos. Os espartanos matavam grande parte das crianças do sexo feminino ao nascer. Honrar pai e mãe, não matar são convenções que herdamos dos israelitas. Gregos e romanos adotavam socialmente o homossexualismo e os homens podiam relacionar-se normalmente com mulheres outras que não as mães de seus filhos. Na Grécia, nas festas dos mistérios baquianos, as mulheres tinham seus dias de liberdade. A família monogâmica e o matrimônio indissolúvel são convenções européias cristãs. Em civilizações antigas, sabemos, os lares abrigavam o harém. A civilização islâmica admite a poligamia. A civilização ocidental se horroriza com a mutilação sexual da mulher, valor religioso e social em determinadas culturas ainda hoje.
John Maynard Keynes afirmou, na segunda década do século passado, que o grande problema social era compatibilizar riqueza com igualdade. Paul Krugman pensa do mesmo modo: o grande problema social é compatibilizar a eficiência com a equidade. Há quem pense que aquela justiça da economia do mercado, de cada indivíduo segundo sua capacidade e a cada um segundo sua produção, prejudica o clima social, porque não respeita a condição básica do companheirismo, da parceria: a igualdade. A economia de mercado realiza de forma extraordinária, através do mecanismo de preços impessoal, a proposta de produção. Ela realiza admiravelmente a produção da riqueza, mas ela não satisfaz da mesma forma competente a tarefa da satisfação pessoal, do bem-estar social, do bem-estar de todos os indivíduos humanos. Falha frequentemente na tarefa da distribuição. Ela marginaliza os inabilitados, de nascimento, por acidente, por longevidade ou por deficiência educacional ou até mesmo por desproporção entre recursos e população (a famosa lei dos rendimentos decrescentes).
A economia de mercado admite que Bill Gates ganhe bilhões de dólares, fortuna fabulosa, inimaginável. Admite que um xeque árabe se aposse de uma jazida de petróleo e decida o valor do combustível para o mundo inteiro, manipulando a quantidade de óleo que deseja fornecer. Admite que no Brasil se convencione que aquele que ganha meio salário mínimo se acha acima do nível da pobreza! A eficiência da economia de mercado precisa ser ajustada aos objetivos da sociedade, isto é, ela deve ser corrigida para proporcionar o bem-estar social, o bem-estar de todos os indivíduos.
Essas falhas da economia de mercado e tantas outras, que brotam como efeitos colaterais danosos, ou provocadas pela ambição açambarcadora de muitos ou ainda porque são bens melhor alocados no âmbito da res publica, diz Paulo Krugman e muitos economistas, devem ser corrigidas pela intervenção do Estado, o responsável pela gestão do bem-estar social, a norma de avaliação do sucesso de uma economia.
De fato, o Estado, a instituição criada pela sociedade para administrar a res publica, encontra nessa área gigantesca matéria de atuação legítima. Acho, todavia, e nisso o meu pensamento coincide com os de muitos vultos extraordinários de pensadores recentes e até contemporâneos, que a instituição Estado deve ser modificada, e até paulatinamente extinta. Acho mesmo que este processo de modificação está funcionando. E por que o Estado seria a única realidade imutável neste Cosmos, que é um processo? Vocês já imaginaram, se a nossa mente tivesse a percepção mais acurada do tempo, e captasse até os milionésimos de segundo? Nós perceberíamos a transformação das sementes, o desabrochar das flores, como as filmagens nos apresentam, e também a transformação da instituição estatal. A instituição Estado está mudando e, dentro de certo tempo, não será a representação que é. Ela será delegação ou nem mesmo será assim tão diferente da própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.
Aliás, a democracia nasceu diferente. A gestão da res publica na Grécia assumiu a forma de democracia direta e o Estado era formado por delegados. O Estado era o grupo de cidadãos eleitos para aplicar a Lei e a Lei era elaborada pela comunidade dos cidadãos. E dessa Lei, Péricles se orgulhava: Não sou escravo. Sou cidadão. Sou livre. Não obedeço a nenhum outro homem. Submeto-me à Lei que eu mesmo crio. Pequenas cidades dos Estados Unidos e da Suíça, nos tempos de hoje, não têm governo constituído por representantes: não têm Câmara de Vereadores, nem mesmo prefeito que administre a cidade com poder de certa forma discricionário. Existe o gestor da cidade, um delegado para dar execução ao que a comunidade dos cidadãos decidem. A Lei municipal é o conjunto de decisões formuladas pelos próprios munícipes. O gestor da cidade é um empregado da comunidade, um instrumento da comunidade. Como se vê, a democracia será então paradoxalmente muito mais liberal e muito mais social!
E penso até que a Economia Humanista procederá realmente de uma Política Humanista. E neste caso, portanto, as falhas de mercado existirão com muito menos frequência e, quando surgirem, serão sanadas com muito mais celeridade e menos trauma. Vejamos, por exemplo, o congestionamento do trânsito das grandes cidades modernas, exemplo dado pelo próprio Paul Krugman de falha de mercado do tipo efeitos colaterais. Ele existe por vários motivos: mau planejamento urbano, administração permissiva, lei econômica do rendimento decrescente, egoísmo, desconfiança do outro, proteção contra a violência e muitos outros motivos. Numa Política Humanista, o problema fundamental da sociedade será a formação da pessoa humana, do cidadão. Acredito que o Ideal Humanista é o lema romano de Juvenal: mens sana in corpore sano.
Na sociedade Humanista, todos têm direitos e todos têm deveres. Todos os cidadãos se sentem responsáveis por tudo, pelo bem e pelo mal. Todos os cidadãos se pautarão pela correção, pelo respeito, pela lealdade, pela transparência. O clima é de confiança, não mais de desconfiança. O número de veículos trafegando na cidade é problema social, de todos. Numa sociedade de pessoas educadas, esclarecidamente responsáveis, o gerente de supermercado na Avenida Nossa Senhora de Copacabana não estacionaria nas horas do dia um caminhão de descarga de mercadoria. Lembro que Boscaccio, o gerente da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, nos idos de setenta do século passado, aproveitava o tempo da volta do trabalho para casa, para debater assuntos de serviço, enquanto me trazia também no carro dele. Lembro-me de meu irmão Haroldo que sempre, no regresso do trabalho para casa, conduzia o carro com lotação completa de colegas. Cada motorista sentir-se-á altamente consciente da forma como conduz, para e estaciona o veículo. Nenhum cidadão praticaria a condução perigosa. Não seria necessária autorização para guiar nem carteira de habilitação. Sociedade muito mais agradável e muito menos onerosa. Estado menor e menos oneroso! Estado liberal e social.
Essas são pequenas e fáceis contribuições de indivíduos de fato educados. Mas, numa sociedade educada, outras soluções mais onerosas seriam facilmente resolvidas: eu teria a verdadeira avaliação de adquirir e colocar mais um veículo no tráfego, teria a verdadeira avaliação do tipo e da dimensão do veículo que adquiro, não atulharia as ruas da cidade com carros estacionados, não edificaria prédios superdimensionados, nem admitiria a existência de cidades superpovoadas. Lembro-me da perplexidade de um brasileiro que trabalhou na Suécia, quando ouviu de um companheiro sueco a explicação por que no pátio vazio do estabelecimento onde trabalhavam, ele estacionava o carro no lugar mais afastado: Os colegas, que virão depois de mim e pressionados pelo horário, estacionarão nos lugares mais próximos da entrada do edifício. Sociedade educada, sociedade humana! Ah! A economia humanista preveniria tantas falhas de mercado que a economia seria indubitavelmente tão diferente, e muito mais eficiente, e socialmente eficiente! E o Estado, se existisse, seria muito menor e muito menos oneroso. Outra vez, surge o paradoxo: oposição entre liberalismo e socialismo é ignorância ou exploração política deletéria. Já era...
O mundo moderno ocidental cultua a liberdade e a igualdade como os dois valores políticos fundamentais. Thomas Jefferson desgostava da instituição presidente dos Estados Unidos, um rei temporário. Karl Marx antevia uma sociedade sem governante, sem Estado. Bakunin exaltva o anarquismo, a sociedade sem Estado. Bertrand Russell enxergava cada indivíduo humano como “algo sagrado...o princípio crescente da vida, um fragmento encarnado do obstinado esforço do mundo” e, por isso, propugnava pela reconstrução radical da sociedade, “eliminação de todas as fontes de opressão, liberação das energias construtivas do homem, com um modo totalmente novo de conceber e regular as relações econômicas e de produção”. Para Bertrand Russell e Noam Chomsky o anarquismo “é o ideal máximo de que a sociedade deve aproximar-se”. R. H. Tawney afirmava: “A liberdade, para ser completa, deve trazer consigo, não apenas a mera ausência de repressão, mas também a oportunidade de auto-organização”.Estamos com a liberdade, estamos com o social, estamos com a educação, estamos com os direitos e os deveres, estamos com a convivência, estamos com a Humanidade, estamos com a tradição do pensamento ocidental, estamos com os sábios da modernidade. Estamos com a Educação já. Estamos com a mudança já.