sábado, 28 de fevereiro de 2009

47. A Profecia de Thomas Jefferson


«Acredito que as instituições bancárias são mais perigosas para as nossas liberdades do que o levantamento de exércitos. Se o povo Americano alguma vez permitir que bancos privados controlem a emissão da sua moeda, primeiro pela inflação, e depois pela deflação, os bancos e as empresas que crescerão à roda dos bancos despojarão o povo de toda a propriedade até os seus filhos acordarem sem abrigo no continente que os seus pais conquistaram.»
Thomas Jefferson 1802
Ortega y Gasset, um grande filósofo e psicólogo do século XX, afirmou: eu sou eu, e minhas circunstância, isto é, cada um é o produto da hereditariedade e do meio-ambiente (de todas as infinitas experiências existenciais). É sob o enfoque deste pensamento, que pretendo explicar essa figura contraditória que foi Thomas Jefferson, um grande vulto da história dos Estados Unidos e da história universal e entender esse texto do grande estadista.
Quem foi Thomas Jefferson? Onde nasceu? Em que família? Em que tempo? O que se pensava? O que acontecia? Como se comportou? Thomas Jefferson foi um latifundiário, um advogado, um político nacionalista e renovador, e um cristão teísta.

1. O preconceito cristão contra os negociantes.

Thomas Jefferson nasceu na cidade de Shadwell, no Estado da Virgínia, nos Estados Unidos da América. O Estado da Virgínia foi o primeiro a receber imigrantes ingleses, no início do século XVII. Treze anos depois é que chegaram os imigrantes do navio Mayflower a Massachusetts. Esses imigrantes eram profundamente religiosos e protestantes perseguidos. O nome Virgínia é homenagem à Rainha Virgem, Elizabete I da Inglaterra.
É importante lembrar que durante mil anos o cristianismo ensinou à Europa que o Homem é o servo de Deus e vive para realizar um projeto de Deus. Deus criou o Universo e, segundo o pensamento de Santo Agostinho, continua sua obra criadora através das forças seminais que fazem as plantas e os animais nascerem. O homem apenas colabora com essa atividade criadora divina preparando a terra, arando, lavrando, semeando, irrigando, capinando, protegendo as plantações contra as pragas e colhendo os produtos agrícolas. Quem realmente faz brotar os produtos agrícolas e crescer é Deus.
Da mesma forma, é a atividade criadora continuada de Deus, ajudada pelo homem, que faz nascer e crescer os animais domésticos. As florestas e os animais silvestres, é evidente, seriam obras divinas, sem qualquer colaboração humana. A atividade criadora de Deus é mais evidente no caso do nascimento de um ser humano. Aí, durante a cópula humana, repete-se a atividade criadora de Deus exatamente como aconteceu no princípio dos tempos e é descrita no Gênesis: Deus cria uma alma e a introduz no óvulo que se transforma em ovo!
Essa idéia da criação divina da alma ainda permance no criatianismo dos nossos tempos, católico e protestante, e é muito viva na população do interior dos Estados Unidos. É ela que exige e mantém o ensinamento do criacionismo nas escolas norte-americanas. O conservadorismo cristão embasou muitas das decisões do Governo Bush. Nesse dogma católico da criação da alma tem origem a oposição católica aos anticonceptivos artificiais, ao uso da camisinha como proteção contra a AIDS e outras moléstias sexualmente transmissíveis, à fertilização in vitro, à manipulação genética, à clonagem e ao uso científico e terapêutico das células-tronco embrionárias, à eutanásia. Tudo isso seria atividade humana atrapalhando o plano divino (a vontade divina), profanando a atividade divina, a atividade da natureza. Esse dogma acabou com o homossexualismo da cultura greco-romana e nutre a oposição moderna do cristianismo a esse comportamento bizarro.
Por isso, porque somente a agricultura, obra divina, é produtiva e gera riqueza de fato, o Cristianismo, na Idade Média, ensinava a fraternidade e a convivência pacífica, exaltava a pobreza e o sofrimento, como caminho para o convívio com Deus na vida futura, enquanto estigmatizava o comérico e a atividade bancária, considerados atividades econômicas marginais: “Mercator vix aut nunquam Deo placere potest!”, isto é, o negociante nunca ou raramente pode agradar a Deus, noutros termos, o negociante, via de regra, vai para o inferno!... Mas os papas, os cardeais e os bispos eram senhores feudais, que se locupletavam com os impostos e as doações dos outros senhores feudais, e igualmente dos comerciantes e dos banqueiros.
Considerando-se, pois, simplesmente a herança da moral cristã, que lhe interessava como latifundiário, pode-se entender o preconceito de Thomas Jefferson contra a atividade bancária, embora, é verdade, o cristianismo de Thomas Jefferson, amigo de Joseph Priestley - cientista e líder do cristianismo protestante, unitário e naturalista - fosse aquele cristianismo, sem ritos, de Jesus Cristo apenas homem carismático. Thomas Jefferson era adorador do Deus conhecido pela razão, não o construído pelos dogmas da Igreja, o arquiteto do Universo, como, dizem, no fim da vida Voltaire queria fazer o Papa professar. O notável político norte-americano afirmou-o claramente: "As religiões são todas iguais - fundadas sobre fábulas e mitologias... Tenho ultimamente examinado todas as conhecidas superstições existentes no mundo, e não encontro em nossa particular superstição (o Cristianismo) uma forma de redenção. São todas iguais, fundamentadas em fábulas e mitologia." Sob a influência de toda a herança cristã, o cristão iluminista Thomas Jefferson nutria preconceito visceral contra os banqueiros, os mais marginais dos negociantes marginais. Este texto não é uma profecia. É a manifestação de um preconceito, produto de uma concepção conservadora arraigada na cultura herdada da civilização da Idade Média.
(continua)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

46. O Sonho da Dinastia de Avis (conclusão)


A redescoberta do brasil

O homem age movido por mil razões. Os infantes portugueses do século XIV assaltaram Ceuta impelidos sobretudo pela fé e pela fama. A motivação de D. Manoel era sobretudo a riqueza, a fama e o poder. Estava ocupado quase totalmente com seus interesses no Oriente que lhe traziam fabulosos retornos. Estendeu o império português por quatro continentes e abastecia os mercados europeus com as mercadorias do mundo. Portugal atingira a posição de nação hegemônica.
Mas o rei tratou também de tomar conhecimento da possessão ocidental, de cujo litoral mandou fazer levantamento cartográfico. Em 1502 arrendou terras a um grupo de negociantes. Portugueses, espanhóis e franceses estabeleceram nela feitorias para extrair o pau-brasil, de melhor qualidade que o oriental, e vendê-lo na Europa. Aventureiros europeus, confortados com a poligamia da sociedade primitiva, integraram-se às tribos e abriram a mente dos índios para o trabalho, o negócio e o lucro através do escambo do pau-brasil.
No reinado de D. João III, Portugal começou a sentir as despesas de manter império tão amplo e proteger o comércio em tão longas e acidentadas distâncias. A Espanha passou a obter riqueza fabulosa com a extração de ouro e prata nas colônias americanas. A pirataria espanhola e francesa atrapalhava o comércio intercontinental. Diminuíra o interesse dos negociantes europeus pelo financiamento desse comércio.
D. João III decidiu iniciar a colonização e a exploração das potencialidades econômicas do Brasil, utilizando-se da iniciativa privada. Martim Afonso de Souza introduziu o cultivo da cana de açúcar em Santos e Duarte Coelho em Olinda. Breve, nas terras brasileiras, mais próximas do mercado europeu, iria desenvolver-se a maior agroindústria do mundo nos séculos XVI e XVII. D. João III redescobriu o Brasil, o Brasil potência econômica mundial. Na segunda metade do século XVI, o Brasil possuía as maiores e mais adiantadas cidades das Américas: Salvador e Recife. O interesse da coroa portuguesa aos poucos se transferiu do Oriente para o Brasil.
No início do século XVIII, o Brasil tornou-se o maior produtor mundial de ouro, mais do que tudo o que as colônias espanholas extraíram nos seus séculos de comércio. O Rio de Janeiro e as cidades mineiras eram as mais ricas das Américas e Ouro Preto a maior cidade do Novo Mundo. Lei teve que ser promulgada para evitar o despovoamento de Portugal. A economia brasileira sustentou Portugal durante dois séculos e meio. E o ouro do Brasil financiou a Revolução Industrial.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

45. O Sonho da Dinastia de Avis (continuação)


Os primeiros onze dias da história do brasil

Os portugueses gastaram os três dias seguintes reconhecendo a região, procurando um ancoradouro seguro e abastecendo de água a frota. Mantiveram amistosos contatos com alguns dos pardos habitantes daquele belo rincão, que estranhamente se apresentavam desnudos com a maior naturalidade e falavam idioma desconhecido. Encontraram um porto grande, formoso e seguro na atual Cabrália.
No dia 26 de abril, domingo, os índios assistiram à primeira missa celebrada no Brasil no ilhéu da Coroa Vermelha. À tarde, quando a maioria dos portugueses, inclusive Cabral, desceram à terra, os índios a eles misturaram-se. Divertiram-se com as brincadeiras de Diogo Dias e dançaram ao som de suas músicas. A confiança mútua foi-se consolidando a tal ponto que os índios já se locomoviam desarmados pela praia em companhia dos forasteiros. Levaram os estrangeiros às suas choupanas onde lhes provaram a comida. Mostraram-se pasmos com os machados utilizados pelos portugueses no corte de árvores. No último dia de abril, agora às centenas, participaram de nova festa ao som da música de Diogo Dias, um ídolo para eles.
Os forasteiros construíram uma grande cruz que, fincada na praia no dia seguinte, significaria a posse lusa sobre a terra. Numerosos índios misturaram-se à tripulação da frota que na manhã do dia 1º de maio desceu à praia para assistir à missa. Participaram da procissão que conduziu a cruz até o local do ato religioso, ajudaram a carregá-la e acompanharam a missa imitando os gestos piedosos dos portugueses.
Os recém-chegados foram tomados de grande admiração pela região descoberta. Experimentaram sentimentos de simpatia pela gente singela, desambiciosa e primitiva que nela encontraram. Ficaram perturbados com sua nudez, sobretudo com a das mulheres, tão asseadas e tão gentis. Na noite do dia l°, dois marinheiros fugiram numa canoa, fascinados com a nova terra e a nova gente.
Naqueles poucos dias, ocorreu um choque entre duas culturas tão diferentes que conviveram numa diminuta praia pela primeira vez. Aquele povo era diferente de tudo o que os portugueses haviam conhecido nos quase cem anos de exploração marítima: a cor, o idioma, parecia desambiciosa, sem necessidade de trabalhar, saudável, sem malícia, sem chefe, sem lei e sem religião. Nada tinha que se assemelhasse aos chefes africanos e muito menos aos rajás da Índia. Essa observação evoluiria para a teoria da bondade natural do homem de Rousseau.
No dia 2 de maio de 1500, a frota zarpou de Cabrália. Onze naus rumaram para a Índia. A nave de mantimentos retornou a Portugal levando a notícia da descoberta da ilha da Vera Cruz para o rei e transportando produtos da terra, entre os quais papagaios e troncos de pau-brasil, e dois índios. Estes, mais que os papagaios, provocaram admiração na corte. O rei mudou o nome para Terra da Santa Cruz. Passou a ser conhecida, porém, como Terra dos Papagaios. O interesse comercial fixou-lhe o nome de Brasil.

(continua)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

44. O Sonho da Dinastia de Avis (continuação)


A descoberta do brasil

Conforme fora planejado, Cabral alongou ainda mais do que Vasco da Gama na direção oeste a “curva do mar”, manobra náutica atribuída a Bartolomeu Dias, segredo e chave do sucesso luso no desbravamento do Oceano Atlântico. Descoberta a rota marítima para as Índias, era oportuno identificar a terra com cujos indícios os marujos lusos entendiam deparar quando devassavam o Atlântico sul. A “carreira das Índias” requeria um ponto de abastecimento de água e lenha na extremidade oeste da “curva do mar”.
Os sargaços e as aves, dias depois, vieram confirmar as suspeitas da proximidade de terra. Cabral, autorizado a tentar nela aportar, fê-lo com sucesso. Na tarde de 22 de abril de 1500, avistou-se um monte, o Monte Pascoal. A armada fundeou defronte dele.
Cabral e seus comandantes sabiam que haviam chegado a terra diversa da África e da Índia. Parecia-lhes uma ilha. A verdade é que os portugueses, 8 anos depois de Colombo, chegavam ao continente americano. Ampliavam para o sudoeste as dimensões geográficas conhecidas. Chegavam a uma região que iria constituir a descoberta mais proveitosa para a coroa portuguesa e cuja riqueza sustentaria o apogeu luso durante os séculos XVI, XVII e XVIII, erigindo-se em sede do império por uma dezena de anos no século XIX.
(continua)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

43. O Sonho da Dinstia de Avis (continuação)


A vida a bordo

A rotina diária nos navios consistia em trabalhar, dormir, comer e rezar.
Os marinheiros, auxiliados pelos grumetes, mantinham-se sobre o convés comandados ao som de apitos pelo imediato na proa, pelo contramestre na popa e pelo guarda entre os mastros. Os soldados dormiam sob o convés, onde se mantinha o restante da tripulação, inclusive os religiosos, exceto os capitães que tinham cabina. Ali misturavam-se com galinhas e ovelhas, que o capitão tinha direito de transportar.
A comida era racionada. Tendo por base biscoito, constava de carne salgada, cebola, vinagre e azeite e, nos dias de jejum, arroz, peixe ou queijo. Os alimentos eram cozinhados a bordo. A água de beber e cozinhar, transportada em tonéis de madeira, era igualmente racionada e cheirava mal.
O lazer restringia-se a assistir à missa, ao teatro e a outros atos religiosos promovidos pelos padres.
O interior das naves era escuro, e logo se tornava sujo, malcheiroso e infecto com os restos de comida e os dejetos humanos e dos animais. A falta de higiene provocava muitas doenças, a mais mortífera delas o escorbuto, que provocava o inchaço das gengivas e hemorragias.
O controle da viagem era realizado através de mapas e instrumentos. A bússola, sempre apontando o norte, permitia conhecer a direção perseguida pela nau. O quadrante, uma simplificação do astrolábio promovida pelos técnicos de D. Henrique, dava a latitude com base nas tabelas matemáticas por eles também aperfeiçoadas, tomando-se por referência o sol. O compasso e as tabelas matemáticas forneciam, de forma muito inexata, a longitude.
(continua)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

42. O Sonho da Dinastia de Avis (continuação)


Os navios de Cabral

A armada portuguesa contra Ceuta era formada principalmente de galés, navios de guerra herdados dos gregos e romanos, impulsionados a remo, às vezes auxiliado por vela, cujo emprego se estendeu até o final do século XVII. Eram longas, estreitas, rápidas, pouco emergindo sobre a água, mas dificilmente manobráveis em águas agitadas. Havia-as unirremes, birremes e trirremes, conforme o número de fileiras de 15 a 30 remos de 15 metros de comprimento movidos por até sete homens, armadas em cada bordo.
Gil Eanes transpôs o cabo Bojador numa barca, utilizada pelos portugueses nas primeiras viagens exploratórias. Era uma embarcação pequena, com capacidade para 25 tonéis, usada na navegação fluvial. Tinha uma coberta, um ou dois mastros, velame quadrangular, e em casos excepcionais era movida a remo.
A seguir, eles desenvolveram a caravela, pequeno cáravo (lagosta ou caranguejo do mar). O cáravo era um pequeno barco de pesca árabe, com capacidade para 50 tonéis e usado na navegação fluvial ou costeira na orla do Mediterrâneo até o século XVII. A caravela era um navio leve, com popa alta e proa baixa, casco esguio, quilha longa, com capacidade de 20 tonéis. Equipada de velas latinas e velas redondas, podia alcançar grande velocidade, manobrar mais facilmente que qualquer outra embarcação e mover-se com facilidade a favor do vento e contra ele. O pequeno calado permitia-lhe navegar próximo à costa e entrar nos pequenos portos em qualquer emergência. O melhor navio do seu tempo, foi a maior obra da indústria lusitana e iniciou nova era na história da navegação.
D. João II armou as caravelas com perto de 30 bocas-de-fogo e no comando de uma delas, com capacidade de 50 tonéis já, Bartolomeu Dias chegou ao cabo de Boa Esperança. A frota de Cabral constava de 10 naus e 3 caravelas. Eram caravelas redondas, desenvolvimento do projeto primitivo.
As naus, evolução das caravelas exigida pela intensificação do comércio intercontinental, chegaram a ter capacidade de 600 tonéis e foram os navios mais usados no auge das expedições marítimas. Posteriormente as necessidades do comércio exigiram embarcações ainda maiores, os galeões, com capacidade de até 1.200 tonéis e 40 bocas-de-fogo.
(continua)

domingo, 22 de fevereiro de 2009

41. O Sonho da Dinastia de Avis (continuação)


A Viagem de Cabral

Mal terminados os festejos pelo retorno de Vasco da Gama, e D. Manoel já preparava nos estaleiros de Lisboa uma armada com destino às Índias. Contratou a participação de negociantes, notadamente genoveses e florentinos. Contratou para chefiá-la Pedro Álvares Cabral, militar da Ordem dos Cavaleiros de Cristo. Para o comando das naus contratou nobres militares ou marinheiros experimentados.
Durante dois anos Cabral e os demais comandantes dedicaram-se ao conhecimento do projeto real e a assimilar as informações novas trazidas por Vasco da Gama e seus comandados. Foram contratados pilotos famosos, contramestres e guardas experimentados, marinheiros capacitados, artesãos, carpinteiros, calafates, tanoeiros e soldados. Foram convocados religiosos. Abasteceram-se os navios de alimentos, munições e artilharia, inclusive de ricos presentes para os rajás indianos.
No dia 8 de março de 1500, no período anual apropriado para o início da viagem, a multidão assistiu nas margens do rio Tejo às solenidades da partida da armada, presididas pelo rei. Só no dia seguinte, porém, os ventos favoráveis enfunaram as velas brancas, marcadas pela ampla e vermelha cruz de São Luís, insígnia da Ordem de Cristo, empurrando as 13 naves com 1.500 homens para a aventura oceânica, conscientes de que só uma minoria conseguiria sobreviver, e vantajosamente, aos incidentes e acidentes da viagem: doenças, fome, imundície, calmaria, tempestade, naufrágios, batalhas, calor, incêndio, desavenças, estresse e extravio. Era como jogar na sorte!
A frota passou pelas Canárias e atingiu Cabo Verde em 14 dias de viagem, onde ocorreu o desaparecimento da nau comandada por Vasco de Ataíde, com 150 pessoas. Ultrapassou a região das calmarias equatoriais e completado um mês cruzou o Equador.
(Continua)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

40. O Sonho da Dinastia de Avis (continuação)


Descobridores, aventureiros e comerciantes

Retornando à pátria, o infante D. Henrique estabeleceu em Lagos, o promontório sagrado (Sagres), a base da conquista sistemática do desconhecido, a Nasa medieval portuguesa. Reuniu pessoas altamente capacitadas na tecnologia náutica, recrutadas em toda a Europa. O importante era progredir paulatinamente, ir e vir, o feedback: construir grande acervo de mapas, de informações sobre as terras e os mares africanos, sobre o Oceano Atlântico sul, completamente desconhecido. Apequenava-se o cavaleiro, avultava o descobridor. Apoucava-se o homem medieval, surgia o homem moderno, o empresário, o burguês, interessado no comércio, no lucro e na riqueza. Ali desenvolveu a ciência, a arte e a indústria da navegação, amparadas na tecnologia de ponta da época. Fracassou na tentativa de apossar-se das Ilhas Canárias, mas descobriu as ilhas dos Açores, da Madeira e de Cabo Verde. Varreu da mente dos marinheiros o medo do oceano. Com a África Ocidental iniciou o comércio, inclusive de escravos.
O rei Afonso V transformou o descobrimento em um negócio: contratou com Fernão Gomes, um negociante lisboeta, a meação no monopólio do comércio da Guiné, durante cinco anos. Fernão Gomes em um lustro descobriu tanta terra quanta D. Henrique em 40 anos. Portugal nessa época negociava com a Costa da Malagueta, do Marfim, do Ouro e dos Escravos. Competia com Veneza nos mercados da Europa.
D. João II retomou o monopólio real e estendeu as descobertas até o limite meridional do continente africano. Portugal, enfim, descobriu em 1487 a junção dos oceanos Atlântico e Pacífico, a passagem para a Índia.
D. Manoel, o Venturoso, fez Vasco da Gama realizar, contra a opinião dos conselheiros, a primeira viagem marítima entre a Europa e a Índia em 1497. Implantou o comércio marítimo entre o Ocidente e o Oriente, deslocou-o do Mediterrâneo para o Atlântico e transformou os oceanos em via de transporte. Portugal arrebatou a Veneza a posição de centro europeu do comércio com a Índia: o carregamento de mercadorias de uma única frota comercial portuguesa correspondia a um ano de transações efetuadas pela cidade italiana.
(continua)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

39. O Sonho da Dinastia de Avis


Cavaleiros e cruzados do fim do mundo

Quando D. Henrique, conde de Borgonha e cavaleiro das cruzadas de Afonso VI de Leão contra os mouros de Espanha, casou com D. Teresa, pelos fins do século XI, o pai da princesa lhe doou o condado de Portugal, próximo ao cabo Finisterra: exatamente isso, no fim do mundo e encravado no flanco do Mar Tenebroso.
O filho do conde, D. Afonso Henriques, fez guerra à Espanha, transformando o condado em reino, e aos mouros ampliando os domínios até Lisboa. João, mestre da Ordem de Avis, à frente das classes mercantis, consolidou, em fins do século XIV, o primeiro Estado Nacional da história, que já compreendia o Algarve.
No tempo apropriado, D. João I pensou apresentar os filhos à nobreza européia num torneio que reunisse a elite dos cavaleiros e damas do continente. Os infantes, com o apoio da rainha, contrapropuseram-lhe um empreendimento cavalheiresco, religioso e político: uma cruzada contra os mouros. A conquista de Ceuta, centro comercial muçulmano na África, franquearia ao mesmo tempo o comércio com a África e as Índias, que fazia a riqueza de Veneza. Uma bula papal conferiu-lhe o status de cruzada.
Preparada durante dois anos e logo após a morte da rainha, zarpou de Lisboa uma armada composta de 240 naus, 30 mil marinheiros e 20 mil soldados. Ceuta foi conquistada em apenas um dia.
(continua)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

38. Concorrentes dos Nossos Descendentes



No domingo passado, dia 15 do corrente mês, o delicioso artigo do escritor Luís Veríssimo em O Globo refletia sobre a originalidade da espécie humana de subtrair-se à influência da força evolutiva, já que obtivera o poder de controlar o volume de produção dos alimentos, elastecendo as dimensões do próprio ecossistema até as dimensões do próprio globo terrestre. Pouco evoluiríamos, portanto, mas também não correríamos o risco da extinção, dizia ele, salvo se carcomidos pelos impiedosos microorganismos parasitários, que teimam em deliciar-se com o banquete de nossos nutrientes. Outro fator, segundo o mestre, de anulação da força evolutiva no seio da espécie humana reside na tecnologia, que recompõe a normalidade do funcionamento de órgãos atingidos pelo desgaste.
Interessante que, no fim do mês de janeiro próximo passado, o jornal O Globo citava frase do extraordinário compositor de música e Ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, em que ele previa que a evolução da Humanidade ocorreria mediante a fabricação pelo próprio Homem de um ser superior a ele, o Homem Robótico ou Cibernético, usando o amplo desenvolvimento da tecnologia.
Ainda anteontem, o ilustre senador Marcelo Crivela, expressou categoricamente no Senado Federal seu repúdio à teoria evolucionista, afirmando que nenhum fato existe que embase a teoria da evolução.
Vê-se que algo existe, no momento, que está estimulando a reflexão sobre a teoria evolucionista. Creio que sejam os duzentos anos, que se completaram em 12 de fevereiro corrente, da data de nascimento do autor, Charles Darwin. A intuição darwiniana da evolução aí permanece como a melhor explicação científica dos fatos inegáveis de que espécies aparecem e outras se extinguem. A Biologia, a Zoologia, a Genética e a Paleontologia apresentam uma explicação coerente de que espécies derivam de espécies precedentes. A teoria evolutiva influenciou a Psicologia nascente e surgiu a Psicologia Funcional. Atingiu a também recém-nascida Sociologia com o inglês Herbert Spencer que afirmou serem os ricos os mais aptos indivíduos da espécie humana. A espécie humana sobreviveria através deles, com a contrapartida da eliminação da espécie humana inferior, constituída pela camada dos indivíduos pobres. Nada de admirar que ele tenha sido recebido no início do século passado, de forma acalorada, pelos norte-americanos e que Andrew Carnegie, aquele do Carnegie Hall e magnata da indústria do aço, o haja incluído no rol de seus grandes amigos. Galbraith acrescenta que Spencer considerava a atitude solidária com relação aos pobres um desserviço à melhoria da espécie humana. O lúcido economista lança uma dúvida: não seria a herança também obstáculo ao trabalho seletivo da força evolutiva no seio da espécie humana?
Por essa mesma época, Nietzsche também falava do super-homem e de que virtudes eram a força, a arrogância, a audácia, o domínio, a opressão. Enfim, o super-homem é o superguerreiro. E a origem do Estado não se acha na convenção, mas no poder: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo não seja arrogância, usurpação e violência". O Conde de Gobineau, diplomata francês, que trabalhou no Brasil, foi amigo de D. Pedro II e desgostava do povo brasileiro, escreveu sobre a desigualdade racial e afirmou que a miscegenação leva à inferioridade mental e à esterilidade. Por isso, naqueles inícios do século passado, em diversos países adotou-se a política da eugenia, pretendendo-se melhorar a raça. Hitler explorou essa ideia para erguer o moral do povo alemão, manter-se no poder e ousar executar o plano do domínio do povo germânico sobre todos os demais. Claro que a eugenia ficou mal vista e tornou-se execrada pela intelectualidade esclarecida. Os respingos da repulsa atingiu a atuação da força evolutiva na espécie humana. Assim, na espécie humana, a força evolutiva não funcionaria, como parece dizer o admirável escritor e sábio que é Luís Veríssimo. Tão estigmatizada se tornou a ideia de superioridade racial, que James D. Watson, um dos agraciados com o prêmio Nobel pela descoberta da estrutura do DNA, se viu constrangido a exonerar-se do cargo em empresa de pesquisa genética, porque ousou advogar, no ano passado, a investigação sobre a possibilidade de diferenciação do nível mental entre as raças.
E não funcionaria, dizem alguns zoólogos e biólogos, porque a evolução das espécies é processo lento, exigindo isolamento e tempo. Isto é, é preciso tempo para que desapareça a espécie menos adaptada e permaneça apenas a espécie mais adaptada, e para que a mutação se consolide. É preciso isolamento para que espécies menos favorecidas não venham interferir na mutação, contrabalançando ou retardando-a. Acontece, entretanto, que outros zoólogos e biólogos pensam que ocorrem também mutações bruscas e até afirmam que novas espécies de aves estão surgindo lá em Galápagos, o histórico laboratório natural das observações de Charles Darwin. Assim, ainda que muito dificultada pela intercomunicação e pela miscegenação, o surgimento natural de uma nova espécie humana pode surgir. Isso, se a Humanidade conseguir corrigir esse comportamento absurdo que parece levá-la à extinção.
A outra forma é a produção de espécie humana superior nos laboratórios de produção artificial de embriões humanos. Já se produzem embriões planejados com diversas qualidades desejadas pelos pais. Já se está na iminência de corrigir defeitos mentais em embriões concebidos naturalmente. Já se está na iminência de produzir seres humanos imunes a diversas doenças. Já se desconfia que já se está usando a genética na fabricação de esportistas mais qualificados. A adoção da farmacalogia na fabricação de corpos mais perfeitos está generalizada e adotada mundialmente. Já se admite que se evite o nascimento de anencéfalos. Já se permite em casos terminais da vida humana certo tipo de eutanásia. Sabe-se que é generalizado o uso de fármacos que aprimoram o desempenho cerebral. A produção da nova espécie humana pode também acontecer artificialmente, produzida pelo homem. Há países que admitem a esterilização de estupradores psicóticos. Há limites éticos a serem considerados, mas tudo indica que a Humanidade seguirá no rumo da eugenia ética.
Há também a via indicada pelo admirável compositor musical, Gilberto Gil, a tecnologia robótica e cibernética. Os norte-americanos estão fabricando um supercomputador que é doze vezes mais potente que o mais potente supercomputador existente. O que esse computador será capaz de fazer? Haverá limite para o poder de invenção humana? Kasparov, o mestre do jogo de xadrez, entrou em pânico quando sentiu a superioridade do computador no ano de 1997. Robôs existem que já reagem, mecanicamente é verdade, à voz e aos esgares humanos. Conseguirá o homem que eles venham a se reproduzir?
Resta, ainda, a via mista de um robô, máquina e homem. Esses estão começando a surgir. Há esse composto que permite a caminhada de paraplégicos, que consegue a manipulação de mãos e dedos robóticos com a simples ordem mental. E há todos esses aparelhos usados pela medicina nas suas mais diversas especialidades. Trata-se de um início. Mas, a trajetória mostra-se ilimitada e ao alcance da tecnologia humana.
Creio que a nossa espécie humana, a atual, aquela à qual pertencemos, não será a realização final da força evolutiva.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

37. Mensagem aos Colegas (18/02/09)


Ontem, os veículos de comunicação informaram que na segunda-feira, dia 16 do corrente mês, um grupo de pessoas, sob a liderança de personalidades dos movimentos sociais e sindicais do Estado de Alagoas, invadiu o prédio da Assembléia Legislativa daquele Estado, e está exigindo a cassação de deputados acusados de corrupção, há já dois anos, e sem conclusão de julgamento nos tribunais do País, eleição de 27 deputados, e discussões públicas sobre educação, saúde, habitação e gastos públicos.
O século XVIII assistiu à revolução das liberdades individuais, o século XIX à revolução industrial, o século XX à revolução tecnológica e o século XXI, acredita-se, assistirá à revolução social ou, até mesmo, ao aparecimento da nova espécie humana. E o que temos a ver com isso? Tudo.
No segundo semestre do ano passado, falei que já se inventara um colar para captar e transmitir para o telefone celular ou para o monitor de um computador o pensamento dos surdos. Não é de se estranhar que, no futuro, os homens usem aparelhos que captem os pensamentos uns dos outros. Acabar-se-á a privacidade, o segredo. Ninguém poderá impunemente maquinar no recesso de sua mente a desgraça de outrem ou da Humanidade. Tudo será às escâncaras, o comportamento e o pensamento. Mas, dir-se-á, isso está muito distante. Será? O primeiro transplante de órgão, um rim, foi feito pelo médico norte-americano Joseph Murray em 1954, isto é, há apenas 55 anos (acho que todos nós aqui já éramos nascidos, e há muito tempo, em 1954). O primeiro transplante de coração ocorreu há 42 anos na África do Sul. Hoje há até quem viva com um coração cibernético (há já seis meses) à espera de um transplante do coração. Hoje já se fazem transplantes de todos os órgãos, exceto o cérebro, em todas as capitais do Brasil e nas grandes cidades dos Estados mais adiantados. Ah! Hoje, pega-se um notebook qualquer, posta-se na vizinhança do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal de Justiça ou de uma empresa qualquer e ouve-se tudo o que pretensamente se está falando em segredo!... Por isso, acho que a grande revolução que se está iniciando, a revolução social, ou até mesmo o aparecimento da nova espécie humana, não vai demorar muito.
Reflitam sobre a nova e estupenda invenção do Homem. Não lhes vou falar sobre o novo supercomputador que os norte-americanos começaram a produzir, doze vezes mais potente que o mais potente supercomputador em funcionamento atualmente. Isso nem é mais tecnologia do futuro é tecnologia do presente. Falando em terminologia marxista (que também já é passado) seria a tese (fim do passado) que já deve estar sendo substituída pela antítese (começo do futuro) que produzirão a síntese (o futuro). No tempo do processo que é a existência, tese e antítese constituem o presente, a síntese é sempre passado ou futuro.
Vou-lhes falar, isso sim, de uma experiência física absolutamente inédita, realizada pelos norte-americanos nos últimos tempos. Todos os corpos se deslocam num espaço contínuo: os animais terrestres, os peixes, as aves, o Homem, os automóveis, os navios, as aeronaves e até as espaço- naves. O Homem acaba de realizar uma nova façanha na área dos deslocamentos. Era um sonho da ciência Física não simplesmente empurrar um corpo de um lugar para outro, não simplesmente fazê-lo dar um salto. O Homem pretendia fazer com que um corpo (uma quantidade de massa) desaparecesse do lugar onde estava e aparecesse noutro lugar, por exemplo, eu desaparecesse do Brasil e surgisse no Japão. O homem acaba de fazer isso com um elétron, no mundo subatômico, é verdade, em dimensões insignificantes para o mundo real da nossa experiência diária, mas em dimensão significativa para as distâncias do mundo subatômico, ainda que, é verdade, muito reduzida. Mas, já conseguiu realizar essa proeza. É o início. Imaginem nós os homens, num futuro que não se pode ainda vislumbrar, desaparecer do Rio de Janeiro e aparecer nos maravilhosos hotéis de Dubai!... Os capitalistas e negociantes vão enlouquecer...
Insisto: e o que isso tem a ver conosco, funcionários do Banco, aposentados e pensionistas da Previ, e associados da Cassi? Tudo.
Nós estamos vivendo numa sociedade, cujo estilo de organização já se está acabando, e não estamos percebendo que o processo existencial nos está deixando para trás. Nos países desenvolvidos não há mais segredo com relação a salários. Os manuais de organização de empresas insistem que importante para a produtividade e para o sucesso é a satisfação dos empregados, a comunicação e a interação entre todos os agentes de produção de uma empresa. A gigantesca crise financeira, que vivemos, ensinou que não mais se podem aceitar sigilos, ambientes de lusco-fusco, nas associações e empresas. Ela também ensinou que não se pode aceitar a desbragada remuneração de uns poucos às custas da exploração remuneratória de muitos. Ela ensinou que não podem existir paraísos fiscais, onde os banqueiros podem fazer o que bem entendem, sem normas que rejam as atividades bancárias e sem fiscalização. Ela ensinou que, para o bem e para o mal, o planeta Terra agora é um espaço comum, contínuo, sem divisórias, único.
Para mim, a grande lição desta crise consiste, em resumo, no significado expresso nestas duas palavras: consenso mundial. Essa é a igualdade do futuro, a aceitação da diversidade, a convivência da diversidade, a diversidade argamassada numa humanidade solidária através do entendimento, sem qualquer concessão à arbitrariedade e à violência. A violência organiza a sociedade pela coação, pela extinção do outro, da diversidade, da pluralidade. Poderia mesmo dela resultar, porventura, alguma associação, alguma sociedade? Ou a sociedade é fruto do entendimento entre os diversos, entre os plurais, que partem do princípio fundamental de que nela todos são iguais? Não pode existir hegemonia do país militarmente ou economicamente mais poderoso. Aliás, a ONU foi criada, há quase sessenta anos, sob essa idéia da formação do consenso universal mundial. Infelizmente, ela foi organizada segundo a concepção da época, segundo a qual, algumas nações detinham mais direitos que outras. Mas, quem entrará satisfeito e pacificamente numa sociedade ou associação, aceitando que o outro pode mais? Só aceito estar em sociedade e associação em que todos mandam e todos obedecem, em que todos trabalham e todos usufruem, em que todos têm os mesmos direitos e todos têm os mesmos deveres.
Não posso aceitar que uns poucos do Governo mandem em mim. Para mim, Governo é um conjunto de mandatários meus, não de representantes. Mandatários fazem o que nós mandamos. Como aliás disso se vangloriava Atenas na voz de Péricles: sou livre porque não obedeço a outro homem, mas me submeto somente à Lei que eu faço. Não posso admitir que uma maioria mande em mim, porque sou livre e quero permanecer livre em qualquer associação ou sociedade de que participo. Só posso admitir a Lei que eu, juntamente com todos os outros cidadãos ou sócios, a fizer. Não aceito maioria mandando em minoria. Há algo fundamentalmente podre na democracia da maioria. Minoria, evidentemente, não pode ter o comando de uma associação. Mas, que minoria ingressará numa associação onde ela será massacrada pela maioria? A Lei, e só ela deveria ser o Governo, deve ser formulada por todos, através do debate, num consenso final, numa aprovação por todos. Não num gesto de submissão, de derrota. Mas, num gesto do triunfo da inteligência, do conhecimento, do respeito, de reconhecimento e exaltação do bem comum. Por isso, nação e associações não deveriam gerar as suas normas através de processos que estimulem, já no nascedouro, a divergência e a oposição. É triste e trágica a existência de partidos. Isso é sinal de barbarismo. O homem civilizado é apartidário. Ele é essencialmente solidário. Nada na sociedade e na associação pode brotar de força desagregadora. Tudo nela tem que brotar da argamassa da força agregadora, niveladora. Tudo tem que ser revisto. Tudo vai ser revisto, no mundo futuro, numa sociedade do conhecimento, onde tudo será claro, iluminado, transparente.
Temos muito que fazer nas nossas associações Previ, Cassi, AAFBB, ANABB, AAPBB, etc. Vamos fazer dessas associações, associações realmente de parceiros, de iguais, de consenso no bem comum. Vamos começar por dois processos: o processo da eleição dos corpos administrativos, sem partidos, sem propaganda, através da indicação de mandatários, por escolha livre de todos os sócios daqueles em quem eles confiam, que eles através do debate e do consenso identificarem como os que devem ser investidos do mandato de administração; e que o índice de reajuste dos benefícios na Previ se torne flexível, de modo que se adotem diferentes níveis de reajuste, em consonância com o nível da atividade econômica ao longo do tempo, alto, baixo e até negativo, e a eles devidamene ajustados. Isso eliminará o risco de ruína dessas instituições, ao mesmo tempo que na Previ acabará praticamente com a esdrúxula fabricação de superávits. O mundo de transparência, de interesse coletivo, de respeito é o meio ambiente em que brota espontaneamente a convivência, que se alça em solidariedade, que dá nascimento ao consenso, a única argamassa possível de uma associação de indivíduos livres, iguais e dignos.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

36. Ética, Economia e Política


Prezado amigo.
Não me julgue mal-educado nem mal-agradecido. Afazeres urgentes ocuparam-me de sorte tal que me impediram de até agora ter o prazer de agradecer-lhe o privilégio de receber seu muito bem lançado artigo sobre os males do governo federal.
Inspirado nos erros e maldades do governo, assesta de fato as baterias contra as realidades miseráveis e tristes da sociedade brasileira, porquanto a elite dirigente é oriunda do povo, por este eleita, constitui o que dele há de mais representativo, tanto que seus componentes são os legítimos representantes do povo!...
A pobreza e a ignorância no Brasil são sobretudo um caso matemático - aritmético ou de Geometria Analítica -, dependendo de que se prefira avaliar mediante simples divisão do PNB pela população ou através do mais sofisticado processo de conjunção das curvas da oferta e da demanda por trabalho, em ponto abaixo do nível de subsistência.
Nada obstante isso, torna-se impositivo que se exija da sociedade brasileira comportamento ético mínimo, indispensável para que exista convívio e colaboração, elementos constitutivos dos fundamentos da sociedade.
Note-se, porém, que o refinamento moral nunca foi a argamassa com que se construíram as sociedades humanas, nem as leis da santidade coincidem com as leis da riqueza. A rainha Elizabeth mandou matar inimigos sem escrúpulos e foi a grande beneficiária dos altos lucros das empresas que formou para explorar o tráfico internacional de escravos negros, cuja nau mais célebre ironicamente exibia o nome de Jesus!... Vasco da Gama, depois de assaltar no Oceano Índico um desarmado navio de peregrinos muçulmanos de volta de Meca para as Índias, mandou incendiá-lo juntamente com todos os tripulantes e passageiros, e subjugou Calicute mediante a exibição de um punhado de cidadãos que aprisionou, matou e esquartejou. Danton foi um requintado ladrão e Robespierre um dos maiores monstros sanguinários da História. Nos dias de hoje, um ministro alemão era amante de uma espiã russa. Vários primeiros-ministros japoneses foram corruptos. Deputados americanos beneficiaram-se com a importação de arroz da Coréia durante anos. Vários ministros franceses entraram em conluio para prestar tratamento médico clandestino na França a um líder muçulmano subversivo, procurado pelos governos europeus por chefiar a chacina de muitos cidadãos do Primeiro Mundo. Nunca houve tanta corrupção e violência contra cidadãos indefesos como na Rússia e demais países comunistas. A violência indiscriminada e amoral era lema para Lenin: “Prefiro matar cem inocentes a deixar escapar um único criminoso!” Em síntese, o moralismo à outrance jamais foi ambiente em que se desenvolveram as sociedades humanas. A História atesta que o desenvolvimento econômico se processou à margem do moralismo medieval cristão, entre cujas normas constava: “Mercator vix aut nunquam Deo placere potest!” (O negociante nunca ou raramente pode agradar a Deus), isto é, o negociante vai para o inferno!...
Nem se pode esperar que os governantes sejam vestais, quando a verdade está em que todos nós, como dizia Pascal, somos anjo e demônio, e grandes humanistas consagraram a frase famosa de Terêncio: “Nihil humani a me alienum puto”(Não me julgo estranho a qualquer coisa que seja humano). A Psicologia, por sua vez, ensina que 15% das pessoas são geneticamente inadaptáveis à sociedade!... A própria Zoologia constata que a sociedade dos camundongos, quando afetada pela superpopulação, se torna palco de violência! A violência, a miséria e a praga (cólera e outras) são a comprovação da tese maltusiana de uma sociedade em que a população cresce mais rapidamente que a produtividade.
Nada obstante, pode-se lutar por que os governantes se pautem pelo mínimo de decência e por que orientem o país e o povo para hábitos de vida que gerem coexistência pacífica e bem-estar social. Pode-se também esperar que o povo se aprimore e aprenda a eleger para o governo pessoas mais qualificadas ética e intelectualmente e que possuam elevado conceito de governo, instituição criada para proporcionar condições para que todos os cidadãos realizem os próprios projetos individuais com liberdade e sem sujeição a interferência de quem quer que seja, porque democracia não é o governo da maioria, e muito menos o da minoria, e menos ainda o dos trabalhadores, como pretendem os líderes sindicalistas brasileiros. Democracia é o governo de todos, no sentido de que cada um se governa e decide o próprio destino, cabendo ao governo limitar-se a decidir exclusivamente no tocante ao que eu chamaria, em sentido lato, os bens públicos. Quanto menor o espaço governamental, mais democrática é a sociedade. Quanto menor o governo, mais livre é o indivíduo e menos escravo, porque o governo é sempre uma minoria impondo sua vontade sobre a totalidade da população!
É por isso que não ouso votar em pessoas desqualificadas pelo saber, porque desprovidas da cultura que fornece o material com se forma a verdadeira sabedoria. São pessoas dotadas do dom da comunicação social e ajustadas à mentalidade dominante em seu meio, como Antônio Conselheiro e John Ball e tantos outros fenômenos de liderança popular, mas sem a capacidade de crivo ideológico. Quantas teses ingênuas e até mesmo trágicas de líderes brasileiros atuais já ouvi na televisão! Um assevera pomposamente que salário não é renda, que a riqueza é produto exclusivo do trabalhador e (regozijem-se Hitler, Mussolini, Stalin, Mao e outros tiranos) que o indivíduo é para a sociedade!... Outro ousa afirmar na Câmara dos Deputados que os pobres podem ter quantos filhos quiserem, porque o sustento e a educação deles são responsabilidade do Estado!... Mal imagina ele que a maior ameaça ao meio ambiente é a superpopulação que nunca foi tão iminente e tão explosiva na História. Mal imagina ele que povo pobre e ignorante não pode ter governo rico e esclarecido!
Cabe a nós a classe mais instruída da sociedade conquistar a confiança do povo, mostrando o absurdo dessas teses ingênuas, e conduzi-lo para o destino glorioso que se acha programado nos arcanos de possibilidades guardados no seio recôndito de nossa terra!
Não há alternativa: o caminho do resgate da pobreza consiste na acumulação de capital (é tese de Marx); e a acumulação de capital numa sociedade de homens livres se realiza numa conjuntura de estabilidade econômica; e a estabilidade econômica só se obtém, quando a economia se deixou hiperinflacionar, através do retorno às fronteiras das possibilidades reais da produção, eliminando-se as excitações oníricas de uma riqueza inexistente. O Brasil é um país pobre. Um país pobre só acumula riqueza com muito sacrifício, muita sabedoria, muita decisão, muita persistência e nenhuma leviandade.
Estou com você: precisamos de moralidade governamental. É fundamental! Mas, urge também que o povo entenda que ele é que deve salvar-se construindo sua riqueza com lágrima, suor e sangue. O Millor já disse: “Quem precisa de salvador não merece salvação!”
(Escrito no ano de 1991)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

35. A Utopia Igualitária


Outro anseio humano tão antigo quanto a História é a pretensão à igualdade social dos indivíduos humanos. Segundo Will Durant, documentos contemporâneos de Gudea relatam que o povo de Lagash adorou aquele monarca como um deus porque no seu governo, 2.600 anos AEC, “durante sete anos a serva era igual à ama, o escravo caminhava lado a lado do senhor e em minha cidade o fraco descansava junto ao forte.”
Ao longo da História, muitos são os registros das tentativas de se construir a sociedade humana da igualdade individual, todas elas até hoje frustradas. A mais importante dessas revoluções igualitárias foi a Revolução Francesa, que teve por lema a trilogia “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” cunhada nas idéias do seu ideólogo, Jean Jacques Rousseau, segundo o qual, os indivíduos humanos no estado natural, isto é, antes de integrarem uma sociedade, são livres, iguais, bons, saudáveis e felizes. A desgraça humana decorreria da sociedade. E a desigualdade entre os indivíduos se originaria na propriedade, que faz surgir o rico e o pobre, e, subseqüentemente, o chefe e o subordinado.
Essas idéias pairavam no efervescente ambiente intelectual da época e tinham o início de sua vertente no filósofo inglês Locke, para quem o indivíduo humano nasce mentalmente vazio e inerte, como um tábua rasa, onde a experiência vai inscrevendo todas as sensações, percepções, idéias, emoções, paixões, juízos, desejos, decisões e vontades. Daí, a distância era um passo para que Helvetius, interlocutor de Rousseau nos famosos salões de Paris de seu tempo, afirmasse que todos os indivíduos humanos nascem iguais e as diferenças são neles produzidas pelo ambiente. Rousseau mais propriamente identifica a causa específica das diferenças individuais: a propriedade.
Helvetius possuía uma receita simples para se obter a igualdade entre os indivíduos humanos: criar ambiente uniforme onde os indivíduos se desenvolvam desde o nascimento, ou mais especificamente, proporcionar-lhes educação absolutamente uniforme, a qual, por isso, deve ser comum, universal e ministrada pelo Estado. Rousseau não ousou advogar a fuga à sociedade e o retorno ao estado natural. Preferiu expor um regime educativo que faria o indivíduo integrado à sociedade aproximar-se do estado natural. Seja como for, a Revolução Francesa retirou a educação do âmbito eclesiástico, tornou gratuita apenas a instrução primária e só para os rapazes compulsória, decepcionando Condorcet, o chefe do Comitê da Instrução Pública da Revolução Francesa, que assim se expressou: “O país tem o direito de criar seus próprios filhos. Não pode confiar esse dever ao orgulho familiar nem aos preconceitos dos indivíduos... A educação deve ser comum e igual para todo o povo francês...” O objetivo dos líderes da Revolução Francesa não se limitava a obter indivíduos iguais, pretendendo principalmente dominar a sociedade através da educação ministrada exclusivamente pelo Estado. A sociedade formada de indivíduos iguais, penso, é inútil, desinteressante e desagradável. Além disso, é absurda, porque é exatamente a desigualdade dos indivíduos humanos que nutre o interesse pela sociedade, porque nela as pessoas se complementam e alcançam maior bem-estar. Acho até que, se os indivíduos nascessem iguais, à educação cumpriria diferençá-los para mais perfeita realização de um objetivo comum. O indivíduo humano nasce numa sociedade de desiguais (pai, mãe e filho) e necessita durante muito tempo dos cuidados maternos para sobreviver.
Um século depois, Mendel e Darwin ensinariam que os indivíduos humanos nascem desiguais. Hoje sabe-se que a reprodução sexuada não se destina tanto à reprodução do indivíduo quanto à permanência da vida, mesmo ao custo da modificação da espécie, reproduzindo enorme quantidade de indivíduos tão diferentes que, em diversas condições ambientais, alguns indivíduos ao menos estejam aptos a sobreviver. Para conseguir a permanência da vida, a natureza surpreende-nos com impressionante fenômeno de desperdício: há espécies em que 98% dos indivíduos gerados sucumbem antes de se tornarem aptos a reproduzir! Os cromossomas e, em última análise, os genes são responsáveis pelas características sexuais dos indivíduos. O homem e a mulher são tão diferentes! Diferem até no encéfalo. Hoje já se sabe que o homossexualismo pode decorrer de causas genéticas e que muitos homossexuais masculinos possuem o hipotálamo mais próximo ao da mulher. O aspecto trágico em tudo isso é saber que o próprio Lombroso, podados os exageros, tinha razão quando identificava causas biológicas para o comportamento agressivo e anti-social de certos indivíduos!
Não creio, por outro lado, que se possa proporcionar educação e ambiente uniforme para todos os indivíduos humanos. O ambiente é diferente, se o indivíduo nasce e vive no Equador, nos trópicos ou nos pólos. Diverso é o ambiente, se o indivíduo nasce e vive no Rio de Janeiro, em povoados, isolado no Nordeste esturricado ou na encharcada floresta amazônica. Uma família difere de outra. Cada família sofre contínuo processo de modificação. E quanta modificação!... Nenhuma escola é igual a outra. Cada escola vale sobretudo o que vale o seu corpo docente. Jamais o corpo docente de uma escola é igual ao de outra. Cada professor difere de todos os outros, e é diferente para cada um de seus alunos, e nem permanece sempre o mesmo para cada aluno, via de regra.
Afigura-se até insanidade pretender proporcionar educação uniforme para indivíduos desiguais. É inadmissível que se dê a mesma educação ao superdotado, ao normal e ao reconhecidamente deficiente mental. Ao contrário, a sabedoria e a humanidade exigem educação diferente para cada um desses grupos. Nem a sociedade pode tratar de maneira uniforme os indivíduos normais e os outros quinze por cento de indivíduos psicóticos e anti-sociais. Nem se antevê que a biologia genética, no estágio atual, possa igualar todos os indivíduos humanos. Nem interessa tal projeto.
Os indivíduos nascem desiguais e se desenvolvem em ambientes desiguais. A sociedade proporciona oportunidades desiguais e nutre expectativas de resultados desiguais para o maior bem-estar da sociedade e de cada indivíduo. Quanto mais livres os indivíduos tanto mais desiguais eles são. Quanto mais iguais os faz a sociedade tanto menos livres eles se tornam.
Tanto a igualdade de oportunidades quanto a de resultados me parecem ingênuas utopias alimentadas por espíritos extraordinariamente sensíveis ou por mentes atreladas à ambição do poder. Em todas as épocas e em todas as sociedades há sempre um pequeno grupo de pessoas cônscias de que quanto maior é a sociedade, tanto mais inviável se torna o governo de todos através de todos, que seria a verdadeira democracia. Até hoje nenhuma sociedade descobriu a fórmula de se livrar do domínio de uma minoria que nasceu e se aprimorou para ser a elite política da sociedade. Todo governo foi de poucos e nada prenuncia que virá a ser de todos. Nascemos desiguais e morreremos desiguais. A igualdade é uma utopia. E a utopia igualitária é uma arma política também.
A igualdade é uma convenção humana, para que se realize outra convenção humana, a convivência, para que exista outra convenção humana, a sociedade, para que exista outra convenção humana, a sociedade civilizada. Os egípcios aceitaram a sociedade faraônica: o faraó, homem deus, dono de todas as terras e bens, e até das pessoas. Sociedade de desiguais. Os gregos conceberam a sociedade dos cidadãos, isto é, dos homens de posse, nascidos na Grécia, que sustentavam o Estado e faziam a guerra. Iguais nas despesas e iguais na guerra, eram também iguais no direito a discutir os destinos da sociedade e a criar as leis, e a se tornarem delegados para aplicá-las. Eram também igualmente livres. Já no que tocava ao patrimônio, não cogitavam de igualdade, mas de equidade: ao mais capaz, maior renda. Maquiavel descobriu que na Idade Média, a convenção aceitava a força e a simulação como base da formação da sociedade e do Estado: o mais capaz, o mais dissimulado e o mais cruel, cruel até o extermínio dos concorrentes e da família dos concorrentes, esse tinha o direito de mandar e de organizar a sociedade a seu talante. Agora, nos tempos modernos, estamos tentando achar uma convenção, que se baseie na igualdade de direitos, igualdade talvez até de renda, não apenas a equitativa dos gregos, mas talvez até mesmo a aritmética dos socialistas. Ainda trataremos disso. Fica apenas uma idéia, uma insinuação: a igualdade é uma utopia, mas também um objetivo de um processo civilizatório. Assim caminha a Humanidade... para a igualdade... caminha e caminha... Civilização é igualdade. Igualdade é massa de coesão da sociedade humana... Civilização implica civis, cidadãos, que habitam a civitas, cidade, que também é urbs, e onde convivem os urbanos, isto é, pessoas que sabem conviver, desiguais que sabem ser iguais para conviverem.
(Escrito no ano de1990)

sábado, 14 de fevereiro de 2009

34. Parabéns Para Você


Minha irmã Edmée, querida e linda nonagenária, matriarca de um lindo clã, poetisa da Academia de Letras de Parnaíba, e educadora de muitas gerações de parnaibanos, avança hoje mais um passo na década dos noventa, rumo à nova etapa dos cem anos. Esta é a homenagem, pela data, do irmão caçula que a ama e idolatra, a edição de uma carta que lhe enviei no século passado sobre nosso pai.


Escassas são as recordações que guardo de papai. Lembro-me dele deitado na rede, armada no quarto contíguo à sala de jantar e aberto para o corredor, que levava da dita sala à cozinha, na iluminada e ensolarada casa que ele construíra para a família na Rua D. Pedro II, com dez janelas e três portas para o exterior. Essa lembrança permaneceu-me indelével, possivelmente porque carregada de forte emoção. Até pouco tempo atrás, nessa imagem mental papai representava o papel do punidor severo, de alguma traquinice que eu perpetrara. Ele reprimia intransigentemente qualquer tentativa, que eu fizesse, de deslocar-me do local onde ele me pusera sentado, às suas costas, um pouco à direita da rede, olhando, através das duas portas - a do quarto e a do corredor - para o quintal, repleto de árvores e flores, entre as quais assomavam as volumosas copas verdes das mangueiras, cujos galhos robustos foram o palco de paradisíacos momentos de minha infância.
O quadro é carregado de emoção também, porque naquele dia e àquela hora, Parnaíba se transportara borbulhante para a Coroa, por onde transitava a lendária aeronave alemã, o DOX. Consoante minhas recordações, somente nós dois, papai e eu, nos achávamos então em casa. Por mais estranho que me pareça, a ausência de mamãe e até mesmo a de Mãe-minha são partes constitutivas da imagem, à qual se acresce a absoluta sensação de silêncio preenchendo o vazio de todos os demais compartimentos daquele inesquecível e aconchegante lar de nossa mãe Nequinha! Bem recentemente alterou-se a minha interpretação do episódio: creio que eu, o filho caçula, fui a companhia obrigatória para meu pai, enfermo já quase terminal, que compactuara com a ausência de todos os demais familiares, que tanto ansiavam por ver, de uma forma ou de outra, indo à Coroa ou simplesmente saindo à rua, a famosa máquina voadora!
Conservo viva imagem da cena da morte de papai, que não me detenho a descrever, por motivos óbvios, à qual se pespega a do cortejo fúnebre exatamente quando passava em frente ao terraço da casa de D. Bela, para onde me esgueirara naquela oportunidade.
O mecanismo mental da associação livre sempre pinça do meu acervo subconsciente, associado à memória de papai, outro quadro, onde me situa na sala de jantar à extremidade da mesa, próxima à porta do malfadado quarto de minha pena, assistindo ao ingresso de Ioiô e tio José de Castro pelo corredorzinho que a liga à porta de entrada da casa. O burburinho da cena, desenhada em tons de penumbra, formou-me a convicção de que eles, por volta do meio-dia, haviam trazido papai, doente, da loja no carro do meu tio abastado, extrovertido, louro, janota, bonito e jactancioso - uma personalidade que eu admirava! Mas, papai integra esse quadro nebuloso, pela sua ausência, supostamente colocado pelo meu subconsciente em algum quarto da casa, vítima de alguma síndrome, e cuidado pelos familiares.
Da mesma forma - mas, nestas reminiscências apenas pelo parentesco - papai me une às presenças de Magno e Alcides, sentados e conversando naquela tranqüila sala de jantar daquela casa invadida de sol e ar por tantas portas e janelas, a nos regalar com doces saborosos trazidos do interior, entre os quais ressalta o de mangaba em calda, embalado em bem confeccionadas latas.
Sua mimosa peça oratória biográfica, proferida em homenagem a papai e promovida pelo imprevisível, singular e generoso irmão José, deu-me a conhecer outras particularidades da vida de nosso pai, e por isso venho agradecer-lhe ter-me proporcionado a satisfação dessa curiosidade.
Como você percebe, sinto papai como uma pessoa tão próxima que ele como que vive dentro de mim formando um núcleo afetivo, e paradoxalmente ele é para mim quase um desconhecido! Mas, o Gonçalo que sinto em minha afeição é uma mescla de João, Einar e Haroldo. E essa figura acho que corresponde à descrição que você, em estilo tão simples e belo, dele fez.
Entristecia-me o pensamento de que papai falecera precocemente, a despeito da insidiosa diabetes que o acaso genético lhe programara. Hoje, quando a história econômica do Brasil me ensina que a expectativa de vida do brasileiro na década de 30 limitava-se a 34 anos, sei que papai, apesar do “handicap” negativo programado no organismo, teve dez anos de sobrevida: ele não morreu prematuramente, para sua época.
Papai é o meu herói desconhecido, enquanto mamãe é a minha santa e a minha deusa. A casa que ele, homem simples, procedente do interior atrasado do Piauí no início do século, edificou em 1920 - uma das melhores de toda a rua D. Pedro II de minha infância - e a família numerosa que constituiu e sustentou, juntamente com o negócio que soube administrar, falam-me com eloqüência do meu querido herói quase desconhecido, que foi capaz de realizar um nível de vida acima da média do seu tempo!
Sei que você conhece muito mais do que eu a história do Piauí. Suponho que a história do Piauí e a de Parnaíba sejam ensinadas no primeiro e segundo graus de ensino em Parnaíba. Se é verdade que você pretende redigir uma biografia mais abrangente de papai, eu fico por aqui a refletir até onde você irá chegar. Os livros de árvore genealógica produzidos por piauienses, inclusive da família Castelo Branco, incluem papai nesse famoso clã piauiense que surge já nos primórdios do processo de formação do Estado do Piauí.
Pereira da Costa fala que João Gomes do Rego Barros, natural de Pernambuco, fidalgo da casa real, capitão-mor de São João da Parnaíba, pertencente a uma das mais importantes famílias daquela capitania, foi agraciado com a sesmaria do delta do Parnaíba. Ele contraiu matrimônio com Ana e Maria, em primeiras e segundas núpcias, filhas de D. Francisco da Cunha Castelo Branco, também fidalgo português, que aportou em São Luís pelos fins do século XVII e de lá se deslocou, poucos anos depois, para as terras piauienses, onde se localizou na região da atual Campo Maior. João Gomes e Francisco situam-se no alvorecer da colonização do norte do Piauí. São as duas mais relevantes figuras dessa epopéia estadual e nacional que é a colonização do norte do Piauí. Os dois matrimônios de Rego Barros deram origem à família Rego Castelo Branco, do Piauí, conforme o já citado historiador.
A segunda metade do século XVIII é dominada pelas façanhas de João do Rego Castelo Branco, o conquistador do Piauí, acolitado, quando se tornaram adultos, pelos dois filhos, Félix e Antônio do Rego Castelo Branco. Valente, ambicioso e cruel, a vida de João foi toda dedicada à guerra contra os índios do Piauí. Exterminou com requintes de desumanidade todas as diversas tribos tapuias que não concordaram em se submeter ao domínio português, sem perdoar mulheres e crianças. Coloco João do Rego Castelo Branco no rol dos Bandeirantes, até mesmo pelo seu projeto de atingir o Rio do Sono, no norte de Goiás, onde supunha achar-se a Lagoa Dourada, para cuja realização, velho e praticamente cego, aceita a incumbência governamental de fazer a guerra contra os índios pimenteiras sublevados, que obstruíam o caminho para o Centro-Oeste.
A História é a História. Ela é a responsável pelo que somos hoje. Nada há por que se arrepender, nem por que pedir desculpas. A História é o que teria que acontecer, para que nós existíssemos hoje. Aquela era a mentalidade da época. Não teria sido a mentalidade de todas as eras históricas passadas? Não seria, em grande parte, a mentalidade da Humanidade em nossos dias? Não estaríamos nós, uns poucos idealistas, lutando de todos os modos, por fazer brotar uma outra Civilização? Uma outra Humanidade?
Comparo João do Rego Castelo Branco a Fernão Dias e Borba Gato que, matando indígenas, infelizmente, e escravizado-os contribuíram para formar o Brasil que hoje somos. Como também acho que Mandu Ladino - o Che Guevara piauiense do início do século XVIII, cuja vida consistiu na luta armada contra os portugueses no Piauí, e morreu em combate nas proximidades de Parnaíba - é um herói nacional e racial, tão grande quanto Zumbi, predecessor de Tiradentes e a ele comparável, conquanto despojado da ideologia liberal das Revoluções Francesa e Americana, e igualmente desprovido do sentimento de nacionalidade brasileira que animava os Inconfidentes. Mandu Ladino era, como o chefe revolucionário dos tempos modernos, o líder indígena que se dedicou a resistir contra a espoliação e o extermínio de seu povo bem como a lutar pela preservação da posse indígena da terra!
Voltemos, para concluir, a João do Rego Castelo Branco. Ele surge na história do Piauí como cabo, passa a capitão, ascende a tenente-coronel e vai até compor uma junta governativa da Província. Percorreu todo o território piauiense, de norte a sul, e penetrou nas terras do Maranhão em excursões bélicas contra os indígenas. Foi a Parnaíba dominar a rebelião dos Teremenbés - “os peixes racionais” - exímios nadadores, belos e fortes, que acabaram confinados na ilha do Caju. Suspeito que João do Rego Castelo Branco haja passado sua infância entre Parnaíba e o Rio Poti (“o rio dos peixes de pela manchada”), este, sesmaria de Domingos Jorge Velho, enquanto aquelas terras do norte eram dominadas na primeira metade do século XVIII pelos Rego Barros e Castelo Branco.
Minha irmã, não me julgue pretensioso. Não tenho a veleidade de nada ensinar-lhe, pois sei quão lida e culta você é. Admiro-a. Estou-lhe apenas confidenciando as indagações que me povoaram a mente, no ensejo em que tomei conhecimento do que você escreveu com tanta beleza sobre papai, especialmente sobre os Rego que se disseminaram pelas terras de Barras, Batalha, Miguel Alves, União, José de Freitas, Oeiras, Parnaíba e Teresina.
(Escrito no ano de 1994)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

33. A Vida Numa Conjuntura Inflacionária (conclusão)


Os casamentos se tornaram mais numerosos, sobretudo nas cidades. Miséria por miséria, o temor de que a espera durasse anos impelia os jovens a correr o risco de casar mais cedo.
Os roubos recrudesceram. Padarias eram pilhadas. Nos restaurantes de luxo, os clientes só recebiam os talheres após terem feito um depósito no caixa, porque a louça desaparecia regularmente. O medo de assaltos conduziu a complicados sistemas de proteção de imóveis e apartamentos: cadeados de segurança, portas duplas, grades de ferro etc.
Floresceu o comércio de aluguel de quartos de apartamentos. A locação era cobrada por dia. O cliente ideal era o turista estrangeiro. O pagamento em dólar dava direito a tratamento especial. Alguns mais audaciosos alugavam-nos para encontros amorosos.
A incerteza do amanhã desenvolveu, entre os que possuíam dinheiro, uma sede de prazeres, de divertimentos. Entre os pobres, havia os que se dispunham a se vender. Em anúncios de jornais, rapazes se ofereciam para levar felicidade a viúvas ricas, e meninas de quinze anos se entregavam a senhores idosos. Proliferaram os espetáculos de travestis, lésbicas e homossexuais. Novos-ricos, traficantes e bilionários davam-se a orgias e espetáculos de nudismo. Gastavam fortunas com banquetes, enquanto um operário precisava trabalhar um mês para ganhar o equivalente ao preço de um par de sapatos. Os que tinham dólar ou mercadoria de valor podiam satisfazer todas as perversões: cocaína, espetáculos pornográficos e masoquismo (prostitutas passeavam pelas calçadas, com chicote na mão e calçando botas vermelhas).
O povo foi atraído por profetas de seitas religiosas e pelo misticismo oriental. Espiritismo, astrologia e telepatia floresciam na alta sociedade.
A especulação era a conseqüência mais natural da inflação. Os alemães, quando tinham meios para isso, corriam na direção de tudo o que não se desvalorizava. Os mais ricos compravam fábricas e imóveis. Outros se contentavam com diamantes, pedras preciosas, dólares. Os agricultores investiam em máquinas e equipamentos. Os que dependiam do dia-a-dia tentavam, com dificuldade, formar um estoque de quilos de açúcar e de latas de conservas. A especulação se tornara uma profissão. Os espertos utilizavam marcos para comprar dólares, depois se desembaraçavam dos dólares comprando mercadorias não-perecíveis e facilmente transformáveis em moedas. Sem muito esforço, conseguiam viver confortavelmente. Eram os novos-ricos, aos quais se somavam os que se endividaram logo após a guerra para comprar propriedades fundiárias.
A Alemanha se tornara um paraíso para os estrangeiros. Em 1922, todos os hotéis da Floresta Negra estavam ocupados por suíços, e os da Renânia por holandeses. E estrangeiros eram os principais clientes das grandes lojas das principais cidades alemãs. Os vendedores perguntavam automaticamente em que hotel deviam entregar as compras. Os trens comportavam três classes, e os ônibus, quatro. A terceira e a quarta eram ocupadas pelos alemães. A primeira e a segunda recebiam quase exclusivamente estrangeiros. Aumentou assim a xenofobia na população alemã. Os estrangeiros, acusados de despojar a Alemanha, eram mal vistos. Nas cidades turísticas existiam dois preços: um, mais barato, para os alemães; outro, 50% mais caro, para os estrangeiros.
Os mais atingidos pela inflação foram os possuidores de pequenos rendimentos e os aposentados. Dispondo regularmente de uma soma fixa que até então lhes permitia viver, eles foram forçados, com mais de sessenta anos, a encontrar expedientes para não sucumbir à miséria. Uns vendiam tudo o que lhes pudesse trazer algum proveito: jóias, quadros ou móveis. Outros alugavam ou sublocavam parte do seu apartamento. Os mais desprovidos esperavam a morte ou arriscavam-se a antecipar-se a ela.
Caiu a freqüência nas universidades, cujos alunos tradicionalmente provinham da média burguesia, particularmente das famílias de profissionais liberais. Desinteressando-se pelos cursos, preferiam dar aulas particulares, pagas com ovos, manteiga e batatas, para não morrer de fome.
Os trabalhadores intelectuais foram mais lesados do que os braçais. Fidalgos, industriais e novos-ricos tinham fraca curiosidade intelectual. Nem as camadas médias nem os operários tinham condições para satisfazer necessidades de cultura. Além disso, com baixa taxa de sindicalização, difícil era a defesa comum de seus interesses. Nada obstante isso, intensas eram as reivindicações salariais por parte da classe trabalhadora, o que contribuiu para o significativo aumento das despesas gerais das empresas alemãs.
A Alemanha foi condenada a um isolamento cultural. Impossível comprar jornais, livros ou revistas estrangeiros. O abastecimento das bibliotecas científicas reduzia-se a quase nada. Muito onerosa a exportação dos livros alemães, porque os livreiros exigiam taxas suplementares e porque tarifas postais eram tão altas que inviabilizavam a remessa na própria Alemanha e para o exterior. Os contatos se tornaram raros para muitos escritores que tinham de privar-se de alimento para franquear cartas. Um romancista alemão definiu a Alemanha do início de 1923 como um hospício para devoradores de cifras. Não se lêem mais livros. Quase ninguém pode comprá-los. Seu preço médio equivale a um dia de salário de um alto funcionário. Apenas 3% da população, estima ele, merece ser chamada rica. O resto sobrevive sob privações ou morre de fome. O preço do papel e as despesas de impressão haviam provocado forte aumento no preço do livro. Os editores diminuíram a proporção de obras de jovens autores.
Esse período da inflação não foi um calvário para todo mundo. Os capitalistas construíram fortunas colossais através da aquisição de bens sólidos. O industrial Hugo Stinnes, em 1923, quadruplicou seus bens graças a empréstimos e possuía 4.500 empresas! As indústrias Krupp, Thyssen e Klochner não passavam por dificuldades e, em 1924, pode ser feito investimento considerável em fábricas ou produções novas. Data dessa época a indústria radiofônica. Um terço da frota comercial é restaurada. O material desenvolvem seus serviços.
Excetuando-se os cereais, cujos preços caíram, os agricultores se beneficiaram na venda de seus produtos no imediato pós-guerra. A partir de 1923, os agricultores foram afetados pela desvalorização do marco. O prejuízo foi atenuado com o investimento em material e numa transformação das condições de vida (compra de tecidos, imóveis, pianos e muitas outras mercadorias). Em 1923 a rede telefônica ficava sobrecarregada a certas horas, porque os agricultores se informavam regulamente sobre o valor do dólar.
A inflação gerou situações diferentes, segundo os grupos sociais. De região em região, de cidade em cidade, a situação econômica era diferente. Marcantes em Berlim, menos nas cidades pequenas, embora também a estas as diferenças entre miséria e riqueza não fossem alheias. Nas cidades, que contavam com grande proporção de funcionários dos correios ou ferrovias, os contrastes entre ricos e pobres eram mais atenuados, porque seus salários acompanhavam o custo de vida, graças a abonos compensatórios dados pelo Estado. Nas cidades que viviam do comércio, sobretudo com o estrangeiro, tinha-se até a impressão de relativa prosperidade.
Ingmar Bergman produziu um filme, “O Ovo da Serpente”, cuja apresentação fez nos seguintes termos: “Estamos no dia 3 de novembro de 1923. O maço de cigarros custa 4 bilhões de marcos. A maioria das pessoas perdeu toda a fé no futuro...” O Ovo da Serpente consegue traduzir, com força e verossimilhança, um aspecto da atmosfera consecutiva ao fenômeno da inflação. Esse aspecto é o da miséria em que se debatiam milhares de cidadãos, reduzidos a expedientes para sobreviver. Uma das seqüências mais sugestivas do filme apresenta, num fim de noite, um cavalo morto em plena rua, que ainda atrelado à carroça é logo desmembrado por duas ou três pessoas e cuja carne é imediatamente oferecida aos raros noctívagos, a preço exorbitante, por uma mulher de cujas mãos escorre sangue!...
(Escrito no ano de 1990)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

32. A Vida numa Conjuntura Inflacionária (continuação)


Não surpreende que em 11 de novembro de 1923, um pão custasse 429 bilhões de marcos, um quilo de manteiga 5,6 trilhões de marcos e um jornal 200 bilhões de marcos. Homens e mulheres corriam para gastar seus salários, minutos após recebê-los, se possível. Nas ruas casais puxando carroças, empurrando carrinhos de mão ou de bebê, ou carregando baldes cheios de cédulas se cruzavam a todo momento: uns iam ao banco para depositar, outros acabavam de retirar dinheiro.
Mal os salários eram recebidos, precipitavam-se na direção das lojas para comprar comida. Com a massa de cédulas correspondentes a uma semana de mais de 50 horas de trabalho e carregando-a em imensos cestos de roupa, obtinha-se comida para dois ou três dias! Médicos e advogados preferiam receber os honorários em carne ou ovos do que em cédulas. Os cigarros eram muito procurados, porque raros e caros. Velhos famélicos eram vistos nas ruas trocando jóias, objetos de arte e peles por alimentos. Um escritor narra que o avô poupara dinheiro durante toda a vida para custear-lhe os estudos. Na morte do avô, ele recebe a herança de 8 mil marcos, depositada num banco. Os pais apressaram-se em retirá-la para que não perdesse todo o seu valor. Ela serviu para comprar um pão, 500 gramas de margarina e 60 gramas de café.
Em 1922/23, a circulação de cheques generalizou-se. Todas as classes sociais utilizavam esse sistema de pagamento. 90% dos operários dispunham de uma conta-corrente na Saxônia. Mas, em 1923 já se evitava o depósito de dinheiro nos bancos, porque a inflação fazia necessária a imediata aquisição de bens e porque se tornara difícil descontar cheque, como descreve um jornalista: “É difícil descontar um cheque. A nota de 10 mil marcos é a de maior denominação impressa e os bancos não a possuem mais. Esta manhã, caminhões carregados com papel-moeda chegaram incessantemente ao Reichsbank, mas mensageiros com carrinhos de mão também lá estavam para levar os maços de notas entregues pelo Banco... O caixa do meu banco deu-me 4 milhões de marcos em notas de 1 mil marcos, cada uma valendo menos de ¼ de libra. Obsequiosamente embrulhou-as num papel para mim. Mais tarde as pus na mesa do restaurante onde almocei e abri quando o garçom trouxe a conta. Mas, esta dificuldade logo desaparecerá, pois esperamos ter notas de 4 milhões de marcos no final da próxima semana.” A queda do marco provocava o aumento dos preços que por sua vez determinava a reavaliação dos salários, tornando necessária nova impressão de papel-moeda. Era um círculo vicioso. Dia e noite, três equipes alternavam na impressão de cédulas, até mesmo no domingo. Os cofres de reserva eram insuficientes para conter essa impressionante massa de papel. Os dirigentes do sistema bancário temiam que, num certo momento, a impressão da cédula custasse mais que o seu próprio valor. Porque só as notas de valor elevado ofereciam efetivas possibilidades de compra, as cédulas de valor médio não eram encontradas no dia a dia. Os bancos ofereciam brindes de 10% a quem as encontrasse. As cédulas mais comuns eram de 10.000 e 50.000 marcos. Era quase impossível receber troco. Ocasionalmente, o comércio parava quando as impressoras se atrasavam na produção de novas notas de denominações suficientemente grandes para que o volume de papel exigido para o provimento das necessidades do dia pudesse ser carregado. Nos correios, os cartões-postais eram totalmente cobertos por selos, de sorte que não sobrava espaço para o endereço, porque era impossível a impressão dos selos acompanhar o aumento da tarifa postal.
Nos últimos meses de 1923, a inflação desenvolveu-se por si mesma e também destruiu todos os métodos conhecidos para controlá-la. Manter dinheiro era, evidentemente, um exercício incrível de tolice. Assim todos os valores recebidos, além de todas as economias passadas, eram levados apressadamente ao mercado. A tributação perdeu todo seu valor. Quando era recolhida, os pagamentos efetuados pelo Governo a haviam superado. Vasto déficit governamental tornou-se conseqüência da própria inflação. As empresas tinham necessidades semelhantes de cobrir o hiato entre as despesas correntes e a posterior chegada das receitas da venda. E esse déficit aumentava com a inflação. E isso não podia ser financiado pelos bancos, porque nenhum banqueiro fazia empréstimo que poucas semanas mais tarde seria pago com dinheiro cujo valor seria apenas uma fração do empréstimo original. Assim, o Reichsbank (o Banco Central alemão) se viu obrigado a fornecer empréstimos diretamente às empresas. Como ninguém queria guardar dinheiro e ninguém mais queria descontar cheque, porque o dinheiro perdia valor enquanto se descontava o cheque, tampouco alguém desejava ter depósito bancário. Assim empresas e governo tratavam, quando precisavam de dinheiro, de reter cédulas. Daí a vasta procura de papel-moeda.
A 2 de novembro de 1922, o dólar valia 9.000 marcos. Em março de 1923, 22 mil marcos. No fim de abril, 40 mil marcos. Em agosto, um milhão de marcos. A 10 de novembro de 1923, valia 130 bilhões de marcos. Com essa cifra inimaginável, a moeda alemã recebia o golpe fatal. A Alemanha está à beira da catástrofe. Essa taxa oficial do dólar constituía a base para os negócios durante 24 horas, isto é, durante o dia 2 de novembro. Ocorre que, na tarde do dia 2 de novembro, a taxa de dólar havia de fato aumentado para 320 bilhões de marcos. O papel-moeda tinha perdido num dia 60% do seu valor. Enquanto os lojistas faziam o câmbio e pagavam os atacadistas, o marco sofria novas desvalorizações. No dia 2 de novembro de 1923, os negócios pararam. Os estabelecimentos comerciais e as grandes lojas ficaram desertas. Os funcionários ficaram reduzidos ao mínimo. Os fazendeiros recusaram vender seus produtos contra um dinheiro que desvalorizava a cada hora. A produção cessou e o desemprego agravou-se. Em setembro de 1923 havia 250 mil desempregados, sustentados inteiramente pelo Estado. Em 15 de outubro, 700 mil. Em 15 de novembro, 1.270.000. Em 15 de novembro, 1.500.000 desempregados, e mais 1.800.000 que trabalhavam apenas meio expediente.
Aliás, o desemprego é a mais terrível conseqüência da inflação. O Estado alemão organizou um serviço de assistência aos desempregados. As municipalidades passaram a dar um abono aos desempregados que em contrapartida realizavam trabalhos de utilidade pública: terraplenagem, construção de estradas, derrubada de árvores etc. Outros ajudavam os inválidos, as viúvas e os pensionistas de guerra em sua compras e em trabalhos domésticos. Outros prestavam serviços em associações filantrópicas. Havia os que recebiam refeições e roupas por trabalhos de auxiliar em oficinas, empresas e escritórios.
Malgrado essa ajuda, a situação do desempregado continuava material e moralmente insuportável, como relatou um deles, um aristocrata e ex-combatente: “Nós, alojados numa casa para solteiros, recebíamos ao meio-dia e à noite uma refeição e tínhamos um abono de 2,5 bilhões de marcos por semana. Gastávamos 1,5 bilhão na compra de um pão, e, com o resto, podíamos apenas obter um pouco de manteiga, geléia ou algo parecido. Isso teria sido suportável, se a refeição nos tivesse saciado...” Segundo seu relato, a refeição era uma sopa, que parecia água, e algumas batatas estragadas. O pão, que compravam, durava quatro dias no máximo. A fome, que lhes atormentava o estômago, impedia-os de ler e escrever. Atordoados, tentavam matar o tempo dormindo ou na expectativa do próximo abono semanal. No dia do recebimento do abono, levantavam-se cedo para tentar chegar em primeiro lugar no local do pagamento. Entravam numa fila gigantesca de operários para receber o dinheiro. Freqüentemente a pontualidade não era rigorosa. Convocados para as dez ou onze horas, só às três ou quatro o abono era entregue. As cédulas de bilhões de marcos desvalorizados eram firmemente seguras. Logo os desempregados se precipitavam na direção de uma padaria para comprar pão. De volta à casa, comiam com avidez. Alguns engoliam tudo de uma só vez para depois vomitar mais tarde. Outros gastavam todo o dinheiro em bebida, a fim de fugir da miséria por algumas horas! Normalmente, o comprador devorava a metade de um pão, para experimentar a sensação da saciedade. Depois, a semana decorria de novo num estado de torpor embrutecido.
O fenômeno do desemprego e do empobrecimento das camadas da população economicamente mais baixas surge muito antes da época de crise aguda inflacionária. No início de 1922, apenas 10% dos alemães dispunham do mínimo vital. A situação só faz piorar com a aceleração da inflação. Em um ano, de março/22 a março/23, os preços foram multiplicados por cem. A garrafa de vinho passou de 50 para 100.000 marcos. A caneca de cerveja elevou-se de 10 para 500 marcos. Em Berlim, o preço do bilhete do metrô multiplicou-se por 30. Impossível encontrar açúcar. Não se obtinha água mineral, mesmo pagando. Na maioria das famílias, a carne só aparecia na mesa uma vez por semana.
A subalimentação das crianças era a regra dramática. Nas escolas, 15 a 40% dos alunos apresentavam diversos sintomas de desnutrição. Ínfima minoria recebia três refeições por dia. De 15 a 20% iam para a escola de manhã, sem ter ingerido o que quer que fosse. Com relação às roupas, as condições não eram melhores. Os alunos se apresentavam sem casaco, inconvenientemente calçados, roupas rasgadas ou insuficientes, sem camisa, sem meias, de chinelos ou pés descalços.
Formavam-se filas de centenas de pessoas diante das padarias, mercearias e leiterias durante horas. Formavam-se também diante dos albergues do Exército da Salvação em busca de sopa, diante dos escritórios de distribuição dos abonos-desemprego ou diante das bancas de jornais (que eram muito caros).
(continua)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

31. A Vida Numa Conjuntura Inflacionária


Economia designa a atividade do indivíduo ou da comunidade humana, dirigida para a obtenção do seu sustento. Essa atividade individual ou coletiva não tem sempre o mesmo ritmo ou nível. Às vezes é muito fraca. Outras vezes é muito intensa. Diz-se que a economia é cíclica. Representada por uma linha, a economia não é, portanto, uma linha reta horizontal, nem um linha reta inclinada que se eleve continuamente, nem uma linha curva com ondulações perfeitas. A história da Economia é representada por uma linha quebrada em que se apresentam movimentos de ascensão (com seus picos) e movimentos de descida (com seus pisos). E isso não é de estranhar-se, porque o próprio indivíduo, no início da vida, não trabalha para sustentar-se. O trabalho surge posteriormente, mais cedo para uns, e mais tarde para outros. E finalmente, essa atividade vai decrescendo, até extinguir-se. A História da Economia relata que no início da década de 30, nos registros de operários de fábricas da cidade de Boston constam nomes de crianças de 2 anos de idade!
É óbvio que elevado nível de atividade econômica é um bem. Baixo nível é um mal. A História da Economia mostra que uma sociedade sem dinheiro tem baixo nível econômico, como foi o caso dos primórdios da Idade Média, em que os feudos eram economicamente auto-suficientes e pouco usavam o dinheiro. Foram os comerciantes que deram início, com as trocas, os mercados e o dinheiro, ao movimento que conduziu a Europa Ocidental à liderança da sociedade humana e transformou a face da terra. O indivíduo humano, porém, sempre tende para a troca de bens materiais e, para facilitar e agilizar essa atividade econômica, sempre cria um meio de troca (o dinheiro). Recentemente, durante as guerras, os prisioneiros costumavam, por ausência de cédulas, utilizar o cigarro como dinheiro. O dinheiro, portanto, é imprescindível para elevar o nível de atividade econômica. Povo sem dinheiro é povo miserável. Marx disse que o dinheiro constitui uma das mais importantes invenções humanas.
O dinheiro é o instrumento de trocas de mercadorias e, por isso, é uma medida de valor das coisas. O preço indica o valor das coisas, isto é, o valor de troca das coisas. Umas valem mais (a casa). Outras valem menos (a folha de alface). Assim como o nível da Economia é instável (sobe e desce), assim também o preço das mercadorias é instável. Quando uma coisa muito desejada é rara, o preço sobe (por exemplo, o preço do feijão nas épocas de seca). Quando uma coisa pouco desejada é abundante (os santinhos de propaganda para vereador em época de eleições são distribuídos gratuitamente), o preço cai. A História da Economia mostra que há também correlação entre a quantidade de dinheiro e o preço das coisas. Pouco dinheiro, preços baixos. Muito dinheiro, preços altos. A História da Economia mostra, portanto, que o aumento da atividade econômica, que é um bem, se faz acompanhar de um aumento da quantidade de dinheiro e do aumento dos preços. A História da Economia também registra épocas em que o nível da Economia se foi elevando tanto que não só atingiu o pleno emprego (poucas pessoas estavam desempregadas) como passou a um rápido e significativo aumento da quantidade de dinheiro e da velocidade de sua circulação, e dos preços. O aumento da quantidade de dinheiro e dos preços, desproporcional para o aumento do nível da Economia, é a inflação (a Economia se entumece de dinheiro e preço, sem que o nível da Economia suba). O ciclo econômico, então, atingiu o pico, isto é, o máximo de fábricas, lojas, campos e empregados já está sendo utilizado na produção do sustento da comunidade. Esse pico, esse ponto culminante do uso dos meios de produção, não é atingido abruptamente num determinado dia, mas aos poucos. À medida que a Economia se aproxima dele, surgem os sinais de enfraquecimento da atividade econômica, com o insucesso de fábricas e empresas economicamente mais fracas (menos eficientes, custos mais altos de produção, menos adaptadas ao mercado) e com o surgimento de desemprego setorial, sobretudo na área de bens de consumo não-duráveis (alimentação, vestuário etc.). A atividade se açoda noutros setores, mormente nos da produção e comércio de bens de produção. A especulação se aguça em toda a sociedade (até na forma de estoque de bens de consumo perecíveis por pequenos consumidores). Dá-se, por fim, o pânico, em que todos perdem, em que o nível da Economia desaba tal qual uma onda de violento maremoto se esfacela na praia! Não foi apenas a recessão que chegou. Foi a depressão econômica! A recessão é uma queda moderada e de curto prazo (de dois ou três meses) da atividade econômica. A depressão se caracteriza por alta taxa de desemprego por longo prazo. Dois pontos merecem ressaltar: os fatos históricos mostram que há desemprego na fase aguda da inflação (inexiste incompatibilidade entre inflação e desemprego) e que a inflação é um terrível mal econômico porque é caminho certo para a mais desastrosa depressão.
As épocas históricas mais famosas pela inflação foram: a era dos descobrimentos (quando o ouro das Américas, e sobretudo do Brasil, afluiu para a Europa), a época da Revolução Francesa (com os famosos “assignats”), os tempos da Guerra da Independência e da Guerra Civil dos Estados Unidos (com os “greenbacks”) e, a experiência mais célebre de todas, os primeiros anos da década de 20 da República de Weimar (Alemanha). Galbraith denomina esta última de a inflação suprema!
Inflação, pois, é o aumento generalizado dos preços, ou o aumento dos preços de todos os produtos, ou o aumento do nível médio dos preços. A inflação é galopante, quando se dá a competição entre os salários e os preços: os salários sobem, porque os preços subiram, e os preços sobem, porque os salários subiram. A inflação galopante é o círculo vicioso do aumento de salários e preços. Hiperinflação é um grande aumento do nível de preços.
A inflação deve ser combatida, porque ela é um mal social e individual. Ela destrói a sociedade e infelicita a grande maioria das pessoas. É isso que pretendemos mostrar, descrevendo a vida dos alemães nos primeiros anos da década de 20. Há ainda um aspecto insidioso na inflação: ela anestesia o indivíduo e a sociedade, mediante a chamada “ilusão inflacionária” em que cada indivíduo pensa que está lucrando com ela, até tornar-se vítima clara dela.
No ano de 1920, os preços internos (isto é, dos produtos fabricados na Alemanha) subiram 9%. No final do ano de 1921, o nível dos preços internos era 35 vezes maior que no início. No final de 1922, era 42 vezes maior que no final de 1921. Em 27 de novembro de 1923, era 964.000.000 (!!!) de vezes maior que no final de 1922.
Já no início de 1920, quando os preços eram apenas 14 vezes mais altos que os de 1913, os habitantes das grandes cidades alemãs como Frankfurt, em pleno inverno europeu que registra baixíssimas temperaturas, não podiam adquirir carvão para se aquecer. O bonde, o transporte popular da época, funcionava no máximo uma hora por dia, tanto quanto durava o fornecimento de gás, porque as usinas termoeléctricas e as companhias de gás não tinham condições financeiras para obter carvão. Por falta de carvão e óleo, as máquinas de muitas empresas estavam avariadas e retornara-se ao trabalho manual. A maioria dos alemães foram forçados a restringir suas necessidades, deixando de lado metade do que era indispensável a uma alimentação normal. Naquele mesmo ano, escritores eram de opinião que o alemão parecia ter perdido a esperança na vida e estar possuído pelo desespero, ao experimentar que a situação se degradava diariamente e que se desfazia o que fora conseguido.
A partir de 1921, o custo de vida (isto é, o preço dos produtos de primeira necessidade) aumentava mais depressa do que os salários. Em 1922, o salário de um operário qualificado perdeu cerca de 25% do seu valor. A remuneração de um professor universitário representava em 1913 quase sete vezes o do operário qualificado. Em 1923 é apenas o dobro. E isso apesar dos esforços dos sindicatos dos trabalhadores por reajustes cada vez mais freqüentes dos salários. No verão de 1923, o acordo previa pagamento de salários semanal nas terças-feiras. Mais tarde, passou para três vezes na semana. Depois diariamente, e de manhã. O aumento salarial do funcionalismo público e dos militares também era diário em 1923!
Apesar de tudo isso, o salário real era inferior ao de antes da guerra, chegando até a menos metade. As profissões liberais (médicos, professores particulares, artistas e outros trabalhadores intelectuais) tiveram perdas maiores que as dos operários e funcionários públicos. Por isso, o assalariado tinha de se proteger contra a inflação galopante correndo para trocar o dinheiro por bens, como todos os outros cidadãos faziam. Em 1923 os preços subiam de hora em hora, ou melhor, continuamente. Um jornalista estrangeiro surpreendeu-se quando lhe pediram 24 mil marcos por um sanduíche de presunto que, na véspera, lhe custara 14 mil. Um consumidor contou que, enquanto o tomava num bar, o café passou de 5 mil para 8 mil marcos. Um turista entrou num restaurante, pagou um dólar e pediu toda a comida a que tinha direito. Depois de consumir uma lauta refeição e quando já se preparava para sair, o garçom se apresenta com um prato de sopa, esclarecendo: “O dólar acaba de subir novamente.” Um jornalista ressalvou que felizmente os salários estavam sendo aumentados e que os vencimentos dos ministros tinham sido elevados de 23 milhões, dez dias atrás, para 32 milhões de marcos. Na região do Sarre, os mineiros, que recebiam em francos, quando subiam da mina, ao invés de desejar a costumeira boa sorte aos que desciam, perguntavam: “Quanto está?” Queriam informar-se da taxa do franco. Só se falava em comprar e vender francos. A cada queda do marco, empregados e operários pagos em franco arremetiam para as lojas para adquirirem todo tipo de mercadorias.

(Continua)