A Arma do
Direito Social Maquiavélico
A
Previdência Social é um contrato entre um cidadão e o Estado, ou uma pessoa
jurídica por este autorizada, para garantir aposentadoria ou pensão. Ela é,
portanto, um contrato de execução continuada a longo prazo. A mais importante
relação desse contrato, aquela para o qual exatamente ele existe, é exatamente
a aposentadoria, aquela que é direito do cidadão e obrigação do Estado. A
essência do contrato é gerar direito e obrigação entre pessoas. O contrato
consiste em unir duas pessoas por uma relação que apresenta duas faces: direito
e obrigação. O contrato faz uma pessoa ser sujeito de direito e outra ser
sujeito de obrigação. Aquela adquire o poder de exigir algo da outra e esta
fica submissa ao poder daquela. O contrato
torna, pois, uma pessoa sujeito de direito sobre outra pessoa, que se torna
sujeito de obrigação para com o sujeito de direito. Numa extremidade dessa
relação existe um senhor, o sujeito de direito, enquanto na outra existe um
servo, o sujeito de obrigação. Tudo isso por livre e espontânea vontade, porque
o contrato é um ato de pessoas, indivíduos humanos livres, autônomos, iguais em
dignidade que, por interesse, pelo bem-estar, aceitam a desigualdade, isto é, a
submissão de uma à outra.
Essa
abdicação da igualdade, isto é, essa momentânea aceitação da desigual dignidade
da pessoa humana é tão eticamente ponderada, é tão eticamente assombrosa, e ,
ao mesmo tempo tão forte elo formativo do tecido social, que o contrato, nas
sociedades civilizadas, se formaliza sob a égide de determinados princípios jurídicos de
elevada força moral e coercitiva. O contrato é um instrumento jurídico formador
do tecido social, gerado pelos princípios de autonomia e da propriedade.
Instrumento aglutinador do tecido social apresenta-se aureolado de importância
como que sagrada, de modo que contrato é para ser cumprido. Essa sacralidade do
contrato, numa sociedade, se ostenta , sobretudo, nos contratos de duração
continuada e no respeito às cláusulas de longo prazo: contrato é para ser
cumprido, pacta sunt servanda, contrato é lei entre as partes, de modo que essa
obrigação só pode ser extinta por mútuo consenso, por impossibilidade
comprovada e imprevista de cumprimento, ou pelo interesse maior da sociedade,
do Estado (princípio da obrigatoriedade dos contratos). O CONTRATO CONSISTE NO
ACORDO DE VONTADES, independe, pois, da entrega das coisas (o princípio do
consensualismo). O contrato, um dos mais poderosos elementos constitutivos do
tecido social, existe precisamente para isso para promover o bem-estar
individual, promovendo o ambiente onde dele se usufrui, a saber, a justiça
social e o bem-estar social (o princípio da função social do contrato). Assim,
o contrato deve realizar-se no nível da dignidade da pessoa humana, por mais
desnivelados que sejam os sujeitos de direito e obrigação sob o enfoque
econômico, social, político e cultural, de modo que o legislador e o juiz devem
guiar-se em seus atos a respeito de
contrato no sentido do equilíbrio de poder
entre as partes (o princípio do equilíbrio, in dubio pro misero). E,
sobretudo, o contrato não pode contrariar, mas sim contribuir para promover os
objetivos de justiça social e bem-estar social, mormente contribuir para
diminuir os efeitos sociais da desigualdade natural entre os indivíduos
humanos. E, por fim, o contrato é o acordo de vontade de pessoas humanas, cuja
dignidade sacraliza todo o processo contratual (negociação, formalização e
execução), envolvendo-o num halo de conduta honesta e leal de ambas as partes,
inadmitindo que as partes ousem ter a pretensão de descumprir o contrato (o
princípio da boa-fé).
Acontece,
ademais, que, em se tratando de contrato de trabalho, o princípio do equilíbrio
atua com tal vigor normativo que assume o papel de princípio protetor – in
dubio pro operário – para eliminar a desigualdade econômica através do
contrapeso jurídico a favor do trabalhador, aplicando a norma mais favorável, a
condição mais benéfica e o adágio “in dubio pro operário”, atingindo até a
aplicação do princípio da irrenunciabilidade: o trabalhador não tem a
capacidade jurídica de renunciar a um direito, a um benefício que lhe confere a
lei ou o contrato de trabalho.
Todo
direito é uma relação de domínio sobre outra pessoa, um poder incontrastável de
exigir que outra pessoa faça ou não faça determinada coisa. A todo sujeito de
direito, pois, corresponde um sujeito de obrigação, aquele é senhor, este é
servo. A relação jurídica é uma ponte de domínio/submissão entre dois sujeitos
autônomos. Confesso que, estabelecido o princípio fundamental de todo o
Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana, é difícil entender os
vínculos estabelecidos pelo contrato de trabalho: empregador/empregado! Nada
obstante, essa é a realidade concreta multicentenária dos novos tempos, a Idade
Moderna, que suplantou a muito mais desumana realidade social da relação
senhor/servo da Idade Média.
Assim,
a cláusula contratual da aposentadoria do meu contrato de trabalho com o Banco
do Brasil, firmado em 5 de outubro de 1957, me conferiu o poder de exigir dele,
30 anos depois, a aposentadoria. E ele a honrou. Naquele dia 5, eu adquiri esse
direito, esse domínio sobre o Banco do Brasil (o princípio do consensualismo).
A partir daquele dia, o Banco do Brasil passou a relacionar-se comigo, quando
antes nenhuma relação tinha comigo. Sim, aquela pessoa jurídica portentosa,
centenária, a maior empresa brasileira naqueles tempos idos, aquela que, vinte
e poucos anos mais tarde, eu constataria alinhar-se entre os dez maiores bancos
do Mundo, essa pessoa majestosa nessa relação ela se sujeitava a mim, a
pagar-me complementação de aposentadoria, caso eu lhe prestasse serviço durante
30 anos.
Essa
relação não era mera promessa. Era um direito meu e uma obrigação do Banco,
garantidos por todo esse grandioso aparato civilizatório e cultural, que é o
Direito, do Direito Brasileiro, ousaria até palpitar, do Direito Universal. A
sociedade assim a entendia. Assim, eu e o Banco entendíamos. Até o Estado assim
o entendia. Qual seria a minha reação, naquele maravilhoso dia 5 de outubro de
1955, se algum jurista me batesse no ombro e me dissesse: “Meu rapaz, você tem
apenas uma expectativa de direito?!”
Claro
que eu tinha, então, uma expectativa de aposentadoria. Claro que eu não tinha o
direito de aposentar-me naquele dia 5. Mas, eu já tinha o direito de
aposentar-me, decorridos 30 anos de serviço, com a renda do dia de minha
aposentadoria. Esse direito adquiri naquele dia 5, com a assinaturaa do meu
contrato de trabalho! Isso me era garantido não só, e principalmente, pelo princípio
do consensualismo, mas todo aquele conjunto de princípios jurídicos do contrato
e, especificamente, do contrato de trabalho, que existe precisamente e,
sobretudo, para isso para proteção da parte mais fraca não apenas contra a
parte mais poderosa, mas até mesmo contra o Estado. E essa defesa, na minha
ignorante opinião de leigo em Direito, deve ser muito mais acirrada em matéria
de Previdência Social, porque PREVIDÊNCIA SOCIAL É DIREITO FUTURO. É EXATAMENTE
ISSO GARANTIA DO FUTURO INCERTO.
Por
oportuno, expectativa tem diversas tonalidades. Há a expectativa que é esperar
que algo ocorra sem motivo algum, a expectativa com base em probabilidades, a
expectativa com base na benevolência alheia ou na sorte, a expectativa em
supostos direitos e a expectativa baseada em direitos. Esta expectativa é
aguardo, isto é, o transcurso do tempo que seguramente (guarda=vigia,
guardar=vigiar) me trará o benefício a que tenho direito. Será exatamente
social - promotor da igualdade, da justiça e do bem estar – apelar para essa
expectativa e, apenas com essa arma, desmoronar toda essa estrutura jurídica de
proteção do contrato do trabalho, prejudicando o empregado e o beneficiário
previdenciário?
A
sensação que me resta é que a Lei 3228/57 é arma apontada para a Previdência
Social, é tiro certeiro. Ela destrói o próprio conceito de contrato, elimina o
próprio princípio do consensualismo, reduz a cláusula de execução continuada a
mera esperança, retira a Previdência Social do título VIII da Constituição
Federal. Previdência Social não mais goza de toda aquela arquitetura jurídica
acima descrita: a Lei 3228/57 declarou que todo aquele portentoso conjunto
jurídico se reduz a expectativa! Não é garantia de direito. Ela destrói até
mesmo as cláusulas pétreas da Constituição Federal!
A
minha sensação final: A Súmula 288 do TST é a expressão da Previdência Social
trabalhista, do empregado. Reformulação significa aderir à marcha da
instauração do ESTADO SOCIAL MAQUIAVÉLICO.
(continua)
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