domingo, 29 de janeiro de 2017

372. Reformulação da Súmula 288 do TST - Análise (continuação)

 A Arma do Direito Social Maquiavélico

A Previdência Social é um contrato entre um cidadão e o Estado, ou uma pessoa jurídica por este autorizada, para garantir aposentadoria ou pensão. Ela é, portanto, um contrato de execução continuada a longo prazo. A mais importante relação desse contrato, aquela para o qual exatamente ele existe, é exatamente a aposentadoria, aquela que é direito do cidadão e obrigação do Estado. A essência do contrato é gerar direito e obrigação entre pessoas. O contrato consiste em unir duas pessoas por uma relação que apresenta duas faces: direito e obrigação. O contrato faz uma pessoa ser sujeito de direito e outra ser sujeito de obrigação. Aquela adquire o poder de exigir algo da outra e esta fica submissa ao poder daquela.  O contrato torna, pois, uma pessoa sujeito de direito sobre outra pessoa, que se torna sujeito de obrigação para com o sujeito de direito. Numa extremidade dessa relação existe um senhor, o sujeito de direito, enquanto na outra existe um servo, o sujeito de obrigação. Tudo isso por livre e espontânea vontade, porque o contrato é um ato de pessoas, indivíduos humanos livres, autônomos, iguais em dignidade que, por interesse, pelo bem-estar, aceitam a desigualdade, isto é, a submissão de uma à outra.

Essa abdicação da igualdade, isto é, essa momentânea aceitação da desigual dignidade da pessoa humana é tão eticamente ponderada, é tão eticamente assombrosa, e , ao mesmo tempo tão forte elo formativo do tecido social, que o contrato, nas sociedades civilizadas, se formaliza sob a  égide de determinados princípios jurídicos de elevada força moral e coercitiva. O contrato é um instrumento jurídico formador do tecido social, gerado pelos princípios de autonomia e da propriedade. Instrumento aglutinador do tecido social apresenta-se aureolado de importância como que sagrada, de modo que contrato é para ser cumprido. Essa sacralidade do contrato, numa sociedade, se ostenta , sobretudo, nos contratos de duração continuada e no respeito às cláusulas de longo prazo: contrato é para ser cumprido, pacta sunt servanda, contrato é lei entre as partes, de modo que essa obrigação só pode ser extinta por mútuo consenso, por impossibilidade comprovada e imprevista de cumprimento, ou pelo interesse maior da sociedade, do Estado (princípio da obrigatoriedade dos contratos). O CONTRATO CONSISTE NO ACORDO DE VONTADES, independe, pois, da entrega das coisas (o princípio do consensualismo). O contrato, um dos mais poderosos elementos constitutivos do tecido social, existe precisamente para isso para promover o bem-estar individual, promovendo o ambiente onde dele se usufrui, a saber, a justiça social e o bem-estar social (o princípio da função social do contrato). Assim, o contrato deve realizar-se no nível da dignidade da pessoa humana, por mais desnivelados que sejam os sujeitos de direito e obrigação sob o enfoque econômico, social, político e cultural, de modo que o legislador e o juiz devem guiar-se em seus atos   a respeito de contrato no sentido do equilíbrio de poder  entre as partes (o princípio do equilíbrio, in dubio pro misero). E, sobretudo, o contrato não pode contrariar, mas sim contribuir para promover os objetivos de justiça social e bem-estar social, mormente contribuir para diminuir os efeitos sociais da desigualdade natural entre os indivíduos humanos. E, por fim, o contrato é o acordo de vontade de pessoas humanas, cuja dignidade sacraliza todo o processo contratual (negociação, formalização e execução), envolvendo-o num halo de conduta honesta e leal de ambas as partes, inadmitindo que as partes ousem ter a pretensão de descumprir o contrato (o princípio da boa-fé).

Acontece, ademais, que, em se tratando de contrato de trabalho, o princípio do equilíbrio atua com tal vigor normativo que assume o papel de princípio protetor – in dubio pro operário – para eliminar a desigualdade econômica através do contrapeso jurídico a favor do trabalhador, aplicando a norma mais favorável, a condição mais benéfica e o adágio “in dubio pro operário”, atingindo até a aplicação do princípio da irrenunciabilidade: o trabalhador não tem a capacidade jurídica de renunciar a um direito, a um benefício que lhe confere a lei ou o contrato de trabalho.
  
Todo direito é uma relação de domínio sobre outra pessoa, um poder incontrastável de exigir que outra pessoa faça ou não faça determinada coisa. A todo sujeito de direito, pois, corresponde um sujeito de obrigação, aquele é senhor, este é servo. A relação jurídica é uma ponte de domínio/submissão entre dois sujeitos autônomos. Confesso que, estabelecido o princípio fundamental de todo o Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana, é difícil entender os vínculos estabelecidos pelo contrato de trabalho: empregador/empregado! Nada obstante, essa é a realidade concreta multicentenária dos novos tempos, a Idade Moderna, que suplantou a muito mais desumana realidade social da relação senhor/servo da Idade Média.

Assim, a cláusula contratual da aposentadoria do meu contrato de trabalho com o Banco do Brasil, firmado em 5 de outubro de 1957, me conferiu o poder de exigir dele, 30 anos depois, a aposentadoria. E ele a honrou. Naquele dia 5, eu adquiri esse direito, esse domínio sobre o Banco do Brasil (o princípio do consensualismo). A partir daquele dia, o Banco do Brasil passou a relacionar-se comigo, quando antes nenhuma relação tinha comigo. Sim, aquela pessoa jurídica portentosa, centenária, a maior empresa brasileira naqueles tempos idos, aquela que, vinte e poucos anos mais tarde, eu constataria alinhar-se entre os dez maiores bancos do Mundo, essa pessoa majestosa nessa relação ela se sujeitava a mim, a pagar-me complementação de aposentadoria, caso eu lhe prestasse serviço durante 30 anos.

Essa relação não era mera promessa. Era um direito meu e uma obrigação do Banco, garantidos por todo esse grandioso aparato civilizatório e cultural, que é o Direito, do Direito Brasileiro, ousaria até palpitar, do Direito Universal. A sociedade assim a entendia. Assim, eu e o Banco entendíamos. Até o Estado assim o entendia. Qual seria a minha reação, naquele maravilhoso dia 5 de outubro de 1955, se algum jurista me batesse no ombro e me dissesse: “Meu rapaz, você tem apenas uma expectativa de direito?!”

Claro que eu tinha, então, uma expectativa de aposentadoria. Claro que eu não tinha o direito de aposentar-me naquele dia 5. Mas, eu já tinha o direito de aposentar-me, decorridos 30 anos de serviço, com a renda do dia de minha aposentadoria. Esse direito adquiri naquele dia 5, com a assinaturaa do meu contrato de trabalho! Isso me era garantido não só, e principalmente, pelo princípio do consensualismo, mas todo aquele conjunto de princípios jurídicos do contrato e, especificamente, do contrato de trabalho, que existe precisamente e, sobretudo, para isso para proteção da parte mais fraca não apenas contra a parte mais poderosa, mas até mesmo contra o Estado. E essa defesa, na minha ignorante opinião de leigo em Direito, deve ser muito mais acirrada em matéria de Previdência Social, porque PREVIDÊNCIA SOCIAL É DIREITO FUTURO. É EXATAMENTE ISSO GARANTIA DO FUTURO INCERTO.

Por oportuno, expectativa tem diversas tonalidades. Há a expectativa que é esperar que algo ocorra sem motivo algum, a expectativa com base em probabilidades, a expectativa com base na benevolência alheia ou na sorte, a expectativa em supostos direitos e a expectativa baseada em direitos. Esta expectativa é aguardo, isto é, o transcurso do tempo que seguramente (guarda=vigia, guardar=vigiar) me trará o benefício a que tenho direito. Será exatamente social - promotor da igualdade, da justiça e do bem estar – apelar para essa expectativa e, apenas com essa arma, desmoronar toda essa estrutura jurídica de proteção do contrato do trabalho, prejudicando o empregado e o beneficiário previdenciário?  

A sensação que me resta é que a Lei 3228/57 é arma apontada para a Previdência Social, é tiro certeiro. Ela destrói o próprio conceito de contrato, elimina o próprio princípio do consensualismo, reduz a cláusula de execução continuada a mera esperança, retira a Previdência Social do título VIII da Constituição Federal. Previdência Social não mais goza de toda aquela arquitetura jurídica acima descrita: a Lei 3228/57 declarou que todo aquele portentoso conjunto jurídico se reduz a expectativa! Não é garantia de direito. Ela destrói até mesmo as cláusulas pétreas da Constituição Federal!

A minha sensação final: A Súmula 288 do TST é a expressão da Previdência Social trabalhista, do empregado. Reformulação significa aderir à marcha da instauração do ESTADO SOCIAL MAQUIAVÉLICO.

(continua)

  








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