Há
uns seis mil anos, nos primórdios da Civilização, um rei sumeriano, narra Will
Durant, promulgava o primeiro código de leis para a sua cidade, o mais sucinto
código legislativo que já existiu. Decretou a igualdade entre o poderoso e o
fraco, e proibiu que o poderoso confiscasse a propriedade das viúvas. Regiam-no
o valor do interesse público da cidade, que naquela época e naquelas
circunstâncias, coincidia com o próprio interesse real, bem como os princípios
do equalitarismo e da proteção do mais fraco. A lei era a proteção do mais
fraco. A proteção do mais fraco foi a razão para a existência da primeira
constituição que existiu no Mundo.
Três
mil anos decorridos, antes que despertassem para a democracia e para a
filosofia, os Gregos consagraram o valor do trabalho no famoso mito de Hércules
na encruzilhada. Heroi, homem excepcional, de qualidades muito superiores ao
normal, competindo com as dos deuses, destes diferindo especificamente e tão só
por ser mortal, Hércules era um trabalhador, dedicando seus dias à cooperação
com o padrasto nas tarefas de prover às necessidades de sobrevivência da
família. Invejava a sorte de outros rapazes que desfrutavam dos prazeres da
vida ociosa em festas na companhia de lindas mulheres. Certo dia, Hércules
precisou sair de casa para adquirir fermento para o preparo da comida. No meio
da viagem, deparou-se com uma encruzilhada: uma via escabrosa, árida,
pedregosa, marginando abismos, levava aos píncaros de montanhas azuis, altaneiras,
luminosas, maravilhosas, avistadas no horizonte longínquo. A outra estrada
ensolarada, ajardinada, atapetada de flores, atravessando maravilhoso bosque
estendia-se por vasta planície, cortada por águas límpidas de um rio, por onde
rapazes e moças se deslocavam em permanente algazarra, conduzia ao desconhecido,
velado por densa névoa.
Hércules,
ainda se achava estático, indeciso sobre qual das vias prosseguir, quando vê
chegar pela via da planície ajardinada, linda jovem cantarolando e dançando. “Vem
comigo,” convidou a jovem. “Quem és?” indagou Hércules, “e para onde me conduzirás?”
“Sou o Prazer e o nosso destino é a Sorte.” Mal acabaram o diálogo, e pela
outra a via, a escabrosa, aparece outra jovem, modesta e bem composta, que se
oferece para guia-lo no restante da viagem. “Quem és tu!,” pergunta Hércules, “e
para onde me levarás?” – “Eu sou o Trabalho e te conduzirei para uma aventura
de conquistas de comida, plantando; de amor, enamorando-se; e de fama,
praticando coisas heroicas.” Hércules deu o braço ao Trabalho e este o conduziu
pelo caminho de seu próprio destino, porque nada se consegue sem esforço.
Quatro
séculos passados, na época dos sofistas e de Péricles, numa sociedade
modificada, já pontilhada de cidades abertas para o mundo mediterrâneo,
composta de várias classes – os donos de terra, os políticos, os filósofos, os
comerciantes, os poetas, os artistas, os navegantes, as mulheres e os escravos –
os sábios de então ensinavam, como Crítias que deus é um espantalho criado pelo
político inteligente para impor a lei que ele fabrica no seu próprio interesse;
como Trasímaco que o justo é a vantagem do mais forte; ou como Crátiles que
justificava a escravidão, argumentando que é justo que o forte subjugue o mais
fraco; ou como os três filósofos citados que entendiam estarem os homens submetidos
à lei natural, que os une e os conduz ao bem – o que é mais útil, mais
conveniente e mais oportuno – assim como à lei positiva, espantalho feito pelo
político inteligente e poderoso, para subjugar o mais fraco e obter vantagem
própria. Esta, é claro, afirmavam, deve ser transgredida, desrespeitada, sempre
que possível...
Tudo
isso já foi dito, e muito mais, ao longo dos séculos, com relação à sociedade e
às leis. Ignorância ou esperteza, pois, ou as duas conjuntamente, consistiria promover-se,
nos tempos atuais de tanta informação, e tantos milênios transcorridos de
evolução civilizatória, uma revisão tão profunda em matéria de trabalho, sem
orientar-se EXCLUSIVAMENTE pela Constituição Federal Brasileira e com a
abstenção da explicitação direta do povo brasileiro, o consentimento de cada um
dos cidadãos.
Está-se promovendo uma reforma das leis
trabalhistas no Brasil. O Brasil é regido por uma Constituição. É essa
Constituição que deve orientar os conteúdos legais dessa reforma. Estou certo
ou estou errado?
O
trabalho é matéria de fundamental importância para o indivíduo humano e para a
sociedade. E tanto que o mais breve e importante capítulo da Constituição
Brasileira, porque síntese da finalidade de toda essa portentosa arquitetura
jurídica, consta apenas de um artigo, o mais importante da Constituição
Brasileira, o 193, o mais breve artigo da Constituição, síntese de toda ela,
porque fundamento e síntese do Título VIII, aquele que esboça toda a finalidade
da Constituição, FUNDAMENTO DO ESTADO BRASILEIRO REPUBLICANO E DEMOCRÁTICO DO
BEM-ESTAR SOCIAL: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o
bem-estar e a justiça sociais.” No meu limitado saber jurídico, espanta-me nada
identificar, em diversos cursos de Direito Constitucional dos mais afamados
mestres atuais, a mínima explanação do alcance desse artigo! Espanta-me, sim! Como
pode isso acontecer? O que pensar de tais mestres?
Desde
o seu preâmbulo a Constituição Brasileira dita aos legisladores e aos juízes
que o Norte para o qual aponta o Direito Brasileiro é a DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA, que há dois mil e quinhentos anos Sócrates, o Mártir da Dignidade da
Pessoa Humana, em Atenas, definitivamente discerniu encerrar-se na
RACIONALIDADE, o autodomínio da pessoa humana, expresso no conhecimento
objetivo e justificado e na autonomia da pessoa humana. O Estado existe para
criar uma sociedade que seja o ambiente social propício a que todos os cidadãos
brasileiros obtenham a sua realização pessoal, individual, isto é, o bem-estar
individual que só eles podem conhecer, desejar e realizar, a sua própria
construção pessoal, através do próprio trabalho.
A
reforma tem que criar ambiente para a criação de trabalho para todos os
brasileiros. Não pode orientar-se para o corte de oportunidades de trabalho,
para a substituição do trabalho humano pela máquina de forma absoluta e
irrestrita, já que o Estado Brasileiro não é baseado no primado do capital.
Só
se pode substituir o trabalho humano pelo trabalho mecânico, na medida em que a
vantagem da mais valia dirigir-se para o usufruto da pessoa humana que foi
desempregada pela máquina.
Mais.
Se toda essa reforma for empreendida SEM REFERENDO, ela merece ser escoimada de
golpe. Ela merece ser desautorizada, como já ensinavam aqueles sábios gregos,
há dois mil e quinhentos anos, já que a Constituição dita, no parágrafo único
do artigo 1º: “TODO O PODER EMANA DO POVO, que o exerce por meio de representantes
eleitos OU DIRETAMENTE, nos termos desta Constituição.” E explicita no artigo
14: “A SOBERANIA POPULAR SERÁ EXERCIDA pelo sufrágio universal e pelo voto
direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - REFERENDO;
III - iniciativa popular.
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