O
Sócrates que Platão, seu discípulo, nos descreve é um grego religioso. Ele fez
uma peregrinação ao templo de Apolo - o deus grego da luz, da inteligência, da
beleza, da perfeição, da harmonia, do equilíbrio e da sabedoria -, em Delfos.
Lá o daimon de Sócrates, o deus protetor que os gregos acreditavam habitar no
interior de cada pessoa, revelou-lhe que a mensagem que lhe era dirigida por
Apolo através da inscrição no pórtico do templo, era que somente o deus é
sábio, o homem é ignorante, mas que o deus colocara no interior do homem a
razão, a faculdade de pesquisar a Verdade. Assim, o único homem sábio era
Sócrates, porque era o único homem que estava convencido de que o homem nada
sabe, mas, simultaneamente, sabia que o ser humano consiste exatamente nisto:
viver a sua racionalidade, isto é, a permanente busca da verdade, da sabedoria.
E esta era a missão que Apolo lhe confiara: a pesquisa da verdade e estimular
nos outros homens a vontade de conhecer a Verdade, de alcançar a sabedoria.
Sócrates,
pois, entendia que o homem é um ser racional, dotado da razão, de conhecer por
que as coisas existem e o que elas são. E, por isso, “a verdade e o
conhecimento são inatos em nós”, explica Mariela Chaui. Entendia que essa razão
é a mesma em cada indivíduo humano. Concluía, então, que todos os homens podiam
chegar ao mesmo conhecimento, à mesma verdade, desde que usassem a razão.
Assim, a verdade está no íntimo de cada pessoa: conhece-te a ti mesmo. É através
da introspecção, do raciocínio, do uso da razão que o homem atinge a Verdade: a
verdade é uma conquista pessoal, não se ensina, não se transmite; a sabedoria
não é um estado de ser, mas um permanente exercício da razão. Marilena Chaui
explica essa ideia de forma muito clara: “Isso não significa que a verdade não exista, e sim que
deve sempre ser procurada e que sempre será maior do que nós.” E ressalta a
novidade do pensamento socrático: “Conhecer não é senão encontrar procedimentos
(como a dialética exercitada na ironia e na maiêutica) capazes de despertá-las
(as ideias das coisas), como se saíssemos de um sono profundo. Essa afirmação
tem um significado decisivo na história da filosofia, pois com ela é afirmado,
pela primeira vez, o poder do pensamento para encontrar, por si mesmo e em si
mesmo, a verdade... (Heráclito e Parmênides) também afirmaram que somente o
pensamento conhece o verdadeiro, mas este encontra-se na phísis ou no ser,
enquanto para Sócrates, o verdadeiro se encontra em nós, no interior da nossa
alma.”
Como
explica Marilena Chaui, o indivíduo humano na vida cotidiana convive com uma
multiplicidade de coisas, colhe uma multiplicidade de aparências opostas,
experimenta uma multiplicidade de percepções divergentes, defronta-se com uma
multiplicidade de opiniões contrárias. Através da razão corretamente utilizada,
o homem transporta-se dessa multiplicidade até à unidade da ideia da coisa, do
conceito da coisa, até a sua essência (segrega as propriedades comuns a todos
os seres singulares de uma determinada espécie). Esse trabalho é o
conhecimento, uma atividade própria do homem, que nenhum outro ser terreno
apresenta, que o distingue de todas as outras coisas existentes. A
racionalidade é, pois, segundo Sócrates, o que o homem de fato é, a sua
essência. Eis a argumentação utilizada
por Sócrates, segundo Platão em Alcebíades I, para provar o que o homem é, a
sua essência:
-
o homem é algo que utiliza um corpo como instrumento;
-
esse algo é a alma, isto é, aquela parte interior do homem que é dotada da
capacidade de conhecer as coisas, o que a coisa é, a essência das coisas,
dotada da inteligência, da racionalidade;
-
a racionalidade é o que distingue o homem de todos os outros seres da Natureza:
o homem é um ser racional, o homem é um animal racional. Essa é a premissa
básica do pensamento socrático.
Esse
raciocínio de Sócrates demonstra toda a sua herança filosófica. Ele procura
explicar a realidade humana mediante a observação do homem tal qual existe na
Natureza e mediante a observação de sua própria pessoa. É a sua herança dos
filósofos Naturalistas precedentes. Esse raciocínio socrático foca na
observação do homem, e esta postura filosófica já é uma herança dos seus
mestres sofistas.
O
pensamento socrático avança para além dessa premissa básica. A racionalidade
humana não é um estado de conhecimento, o homem não possui o conhecimento das
coisas, o homem adquire o conhecimento das coisas mediante o raciocínio, a
atividade racional, o exercício da razão. O conhecimento é uma atividade
permanente do homem, a sua atividade por excelência. A verdade humana sempre
pode ser ampliada, aprimorada, está em permanente aperfeiçoamento.
Sócrates
avança ainda mais: é através da racionalidade, pois, que o homem adquire a
Verdade, a racionalidade que está em todos os homens; logo todos os homens,
podem adquirir a mesma Verdade; a concordância humana é possível, o
entendimento humano é possível; o diálogo humano não é uma competição e sim uma
cooperação; o ensino não é uma transmissão de conhecimento, mas sim um auxílio
incitativo e facilitador; e, sobretudo, a racionalidade confere ao homem a
capacidade de conhecer o Bem: o Bem do Homem é a Verdade. O Homem é capaz de
conhecer e determinar os procedimentos, as normas, as ações que o tornam feliz.
O homem honesto é o homem sábio: a honestidade, a virtude, a excelência é a
Verdade, a Sabedoria. O homem desonesto é o homem ignorante: a desonestidade, o
vício, a ignomínia é o Erro. O homem sábio conhece o Bem. E quem conhece o Bem
não pode deixar de praticar o Bem. O homem sábio é o aristocrata.
O
homem racional é autônomo. O homem é autônomo na medida em que age
racionalmente. O homem racional conhece e faz suas próprias normas de vida. O
homem constrói suas leis e sua sociedade. A virtude, a moral, a excelência, a
aristocracia é a Verdade, a Sabedoria. A Sabedoria é a Vida racional, a vida
virtuosa, a vida honesta, a moralidade. A Sabedoria não é um estado, é a
própria vida até o seu último instante, a morte, é a vida do aristocrata.
Finalmente,
Sócrates entendia que o raciocínio lógico é um conhecimento metódico, indutivo,
baseado na observação, como já explicamos acima. Ele usava o método dialético,
o diálogo socrático, que constava de duas partes: a ironia (refutação) onde a
alma se purifica do falso saber (o indivíduo se convence de que não tem a
verdade, mas apenas preconceito, opinião falsa) e a maiêutica onde emerge a
verdade que se acha no íntimo do indivíduo.