sexta-feira, 23 de junho de 2017

384. Só Sei Que Nada Sei


O Sócrates que Platão, seu discípulo, nos descreve é um grego religioso. Ele fez uma peregrinação ao templo de Apolo - o deus grego da luz, da inteligência, da beleza, da perfeição, da harmonia, do equilíbrio e da sabedoria -, em Delfos. Lá o daimon de Sócrates, o deus protetor que os gregos acreditavam habitar no interior de cada pessoa, revelou-lhe que a mensagem que lhe era dirigida por Apolo através da inscrição no pórtico do templo, era que somente o deus é sábio, o homem é ignorante, mas que o deus colocara no interior do homem a razão, a faculdade de pesquisar a Verdade. Assim, o único homem sábio era Sócrates, porque era o único homem que estava convencido de que o homem nada sabe, mas, simultaneamente, sabia que o ser humano consiste exatamente nisto: viver a sua racionalidade, isto é, a permanente busca da verdade, da sabedoria. E esta era a missão que Apolo lhe confiara: a pesquisa da verdade e estimular nos outros homens a vontade de conhecer a Verdade, de alcançar a sabedoria.

Sócrates, pois, entendia que o homem é um ser racional, dotado da razão, de conhecer por que as coisas existem e o que elas são. E, por isso, “a verdade e o conhecimento são inatos em nós”, explica Mariela Chaui. Entendia que essa razão é a mesma em cada indivíduo humano. Concluía, então, que todos os homens podiam chegar ao mesmo conhecimento, à mesma verdade, desde que usassem a razão. Assim, a verdade está no íntimo de cada pessoa: conhece-te a ti mesmo. É através da introspecção, do raciocínio, do uso da razão que o homem atinge a Verdade: a verdade é uma conquista pessoal, não se ensina, não se transmite; a sabedoria não é um estado de ser, mas um permanente exercício da razão. Marilena Chaui explica essa ideia de forma muito clara: “Isso não  significa que a verdade não exista, e sim que deve sempre ser procurada e que sempre será maior do que nós.” E ressalta a novidade do pensamento socrático: “Conhecer não é senão encontrar procedimentos (como a dialética exercitada na ironia e na maiêutica) capazes de despertá-las (as ideias das coisas), como se saíssemos de um sono profundo. Essa afirmação tem um significado decisivo na história da filosofia, pois com ela é afirmado, pela primeira vez, o poder do pensamento para encontrar, por si mesmo e em si mesmo, a verdade... (Heráclito e Parmênides) também afirmaram que somente o pensamento conhece o verdadeiro, mas este encontra-se na phísis ou no ser, enquanto para Sócrates, o verdadeiro se encontra em nós, no interior da nossa alma.”

Como explica Marilena Chaui, o indivíduo humano na vida cotidiana convive com uma multiplicidade de coisas, colhe uma multiplicidade de aparências opostas, experimenta uma multiplicidade de percepções divergentes, defronta-se com uma multiplicidade de opiniões contrárias. Através da razão corretamente utilizada, o homem transporta-se dessa multiplicidade até à unidade da ideia da coisa, do conceito da coisa, até a sua essência (segrega as propriedades comuns a todos os seres singulares de uma determinada espécie). Esse trabalho é o conhecimento, uma atividade própria do homem, que nenhum outro ser terreno apresenta, que o distingue de todas as outras coisas existentes. A racionalidade é, pois, segundo Sócrates, o que o homem de fato é, a sua essência. Eis a  argumentação utilizada por Sócrates, segundo Platão em Alcebíades I, para provar o que o homem é, a sua essência:
- o homem é algo que utiliza um corpo como instrumento;
- esse algo é a alma, isto é, aquela parte interior do homem que é dotada da capacidade de conhecer as coisas, o que a coisa é, a essência das coisas, dotada da inteligência, da racionalidade;
- a racionalidade é o que distingue o homem de todos os outros seres da Natureza: o homem é um ser racional, o homem é um animal racional. Essa é a premissa básica do pensamento socrático.

Esse raciocínio de Sócrates demonstra toda a sua herança filosófica. Ele procura explicar a realidade humana mediante a observação do homem tal qual existe na Natureza e mediante a observação de sua própria pessoa. É a sua herança dos filósofos Naturalistas precedentes. Esse raciocínio socrático foca na observação do homem, e esta postura filosófica já é uma herança dos seus mestres sofistas.

O pensamento socrático avança para além dessa premissa básica. A racionalidade humana não é um estado de conhecimento, o homem não possui o conhecimento das coisas, o homem adquire o conhecimento das coisas mediante o raciocínio, a atividade racional, o exercício da razão. O conhecimento é uma atividade permanente do homem, a sua atividade por excelência. A verdade humana sempre pode ser ampliada, aprimorada, está em permanente aperfeiçoamento.

Sócrates avança ainda mais: é através da racionalidade, pois, que o homem adquire a Verdade, a racionalidade que está em todos os homens; logo todos os homens, podem adquirir a mesma Verdade; a concordância humana é possível, o entendimento humano é possível; o diálogo humano não é uma competição e sim uma cooperação; o ensino não é uma transmissão de conhecimento, mas sim um auxílio incitativo e facilitador; e, sobretudo, a racionalidade confere ao homem a capacidade de conhecer o Bem: o Bem do Homem é a Verdade. O Homem é capaz de conhecer e determinar os procedimentos, as normas, as ações que o tornam feliz. O homem honesto é o homem sábio: a honestidade, a virtude, a excelência é a Verdade, a Sabedoria. O homem desonesto é o homem ignorante: a desonestidade, o vício, a ignomínia é o Erro. O homem sábio conhece o Bem. E quem conhece o Bem não pode deixar de praticar o Bem. O homem sábio é o aristocrata.

O homem racional é autônomo. O homem é autônomo na medida em que age racionalmente. O homem racional conhece e faz suas próprias normas de vida. O homem constrói suas leis e sua sociedade. A virtude, a moral, a excelência, a aristocracia é a Verdade, a Sabedoria. A Sabedoria é a Vida racional, a vida virtuosa, a vida honesta, a moralidade. A Sabedoria não é um estado, é a própria vida até o seu último instante, a morte, é a vida do aristocrata.

Finalmente, Sócrates entendia que o raciocínio lógico é um conhecimento metódico, indutivo, baseado na observação, como já explicamos acima. Ele usava o método dialético, o diálogo socrático, que constava de duas partes: a ironia (refutação) onde a alma se purifica do falso saber (o indivíduo se convence de que não tem a verdade, mas apenas preconceito, opinião falsa) e a maiêutica onde emerge a verdade que se acha no íntimo do indivíduo.



segunda-feira, 12 de junho de 2017

383.Conhece-te a ti Mesmo


Protágoras viveu no século V AEC, o século de Péricles, cerca de 70 anos. Não era ateniense. Nasceu na cidade grega de Abdera, na época das guerras contra os persas, e faleceu anos antes do armistício de Atenas com Esparta. Era um sofista, professor de retórica. Era um profissional da oratória, profissão, naqueles tempos, muito requisitada pelos cidadãos atenienses.

Com efeito, como explica Marilena Chaui, apoiada em estudiosos da sociedade ateniense naqueles tempos, a transformação experimentada por Atenas, naqueles três séculos decorridos entre Tales e Protágoras, fora tão profunda que até substituíra o ideal do guerreiro belo e corajoso pelo do bom orador. A excelência não mais consistia na coragem, mas no poder de convencer. A aristocracia não mais era a plutocrata, mas a meritocrata. O aristocrata não mais nascia, a aristocracia não mais herança era, não mais terra era. Agora, a aristocracia passara a ser adquirida, o poder de influenciar na sociedade, o poder de falar, de pensar, de comunicar-se, de argumentar, de debater, de convencer, de persuadir. Agora, todos nasciam iguais. As diferenças, a excelência, passaram a ser adquiridas.

A retórica, a oratória, pois, tornara-se preciosa mercadoria na cidade de Atenas, para onde, assim, convergiam os sofistas de todo Mundo conhecido, os professores da arte de argumentar, atraídos pela vida social da cidade e pela remuneração da profissão. A atenção dos filósofos, portanto, ampliou-se para além da explicação da Natureza. Alargou-se para abarcar e focar principalmente a palavra, a argumentação, o discurso, o pensamento, o homem, a lei e a sociedade. Os sofistas, afirmam Reale e Antiseri, interessavam-se pela cultura (a linguagem, a retórica, a arte, a educação, a política, a ética e a religião).

Os sofistas foram  tocados profundamente pela constatação das múltiplas respostas apresentadas pelos filósofos Naturalistas à indagação do princípio, da natureza das coisas. Percebiam a diversidade de costumes e leis existentes nas cidades que percorriam e povos que conheciam, no decurso da vida de andarilhos do magistério, que adotavam. Entendiam que cada pessoa tinha sua percepção própria das coisas e sua maneira própria de conduzir-se na vida. Professavam, pois, a doutrina do Relativismo: inexiste Verdade absoluta, só existem opiniões, mais ou menos verossímeis, mais ou menos oportunas, convenientes e úteis.

O mais ilustre de todos os sofistas foi Protágoras. Nasceu em Abdera. Viajou por quase todas as cidades da Grécia. Lecionou em Atenas. Foi amigo de Péricles. Evadiu-se de Atenas, após condenação por impiedade e ateísmo. Morreu em naufrágio numa viagem para a Sicília. Eis como Platão, em Tieto, expõe o pensamento de Protágoras: “...a verdade é como escrevi: cada um de nós, de fato, é medida das coisas que existem e das que não existem... ao doente parece amargo o que come, e assim também é para ele, enquanto para quem está sadio é, e parece o contrário.” Não existe, portanto, o princípio, a natureza, que os Naturalistas investigavam. “O ser e o não-ser dependem inteiramente de nossas sensações, percepções, opiniões, ideias e ações... As coisas são ou não são conforme os humanos as façam ser ou não ser, ou digam que elas são ou não, segundo o nomos (a norma)”, explica Marilena Chaui. Medir é comparar uma coisa com outra, tomada como padrão, referência. O conhecimento humano é um juízo, uma comparação, um ato de medir: é, não é. Conhecer, pois, é julgar (comparar com uma norma, medir).  E qual é, no juízo humano, o ponto de referência? A utilidade, a conveniência, o interesse bem como as percepções e sensações humanas, o homem: o homem é a medida de todas as coisas.   E Marilena Chaui conclui: “Assim, o homem é medida de todas coisas... significa que é por ação humana que as coisas existem tais como são e que outras não existem, porque os homens convencionaram, por meio de leis, não admiti-las.”

Sem a natureza dos filósofos naturalistas, só existe o puro devir. Esse devir abarca inclusive o próprio homem (aquele o objeto conhecido e este o  sujeito cognoscente). Logo, os princípios de identidade e de contradição carecem de base de validação: o que é pode não ser. Cada um, pois, tem sua verdade, mesmo que suas opiniões sejam opostas. E a mestra paulista encerra sua dissertação sobre Protágoras: “As ideias gerais sobre as coisas (as qualidades opostas, a justiça, o bem, o útil, as leis, os deuses, as ciências...) são convenções nascidas de um consenso entre os homens para utilidade da vida em comum e de cada um. Não há saber universal e necessário sobre as coisas – não há a verdade, apenas opiniões verdadeiras em movimento e as técnicas nascidas da experiência e da observação para uso e ação dos homens. A arte retórica e arte política devem persuadir-nos de quais são as melhores verdades e as melhores técnicas para cada cidade.”

Essa era, pois, a atividade do sofista, ensinar a argumentar, a tornar um pensamento verossímil, uma opinião mais verossímil que outra, a transformar uma opinião em verdade, a fazer atraente ou repulsiva uma ideia, a convencer, a persuadir, a dominar, subjugar a mente alheia, do ouvinte, do auditório: dominar o povo, comandar a sociedade pela oratória. Essa ambiguidade de pensamento bem como a mercantilização do saber alimentaram, com o decorrer do tempo, grande oposição aos sofistas no seio da sociedade ateniense.

Contemporâneo de Protágoras foi Górgias, sofista que professava o nihilismo. Viveu mais de cem anos. Contrapôs-se a Parmênides, afirmando, segundo Sexto Empírico: “nada existe, se existisse não seria inteligível, e se inteligível fosse não seria comunicável aos outros.” Nada existe, já que o ser é algo e o não-ser é nada, logo o ser é algo e nada é, o ser é algo que nada é. Se o ser é nada, entender o ser é nada entender, logo o ser é incompreensível. O conhecimento transmite-se pela palavra, que é mero som, logo o que é transmitido não é o pensamento, muito menos o ser, mas apenas sons. O discurso não coloca o ser na mente do ouvinte, mas apenas sons nos seus ouvidos. Protágoras entendia que o discurso, o debate, conduzia ao entendimento, ao consenso, que era, no final das contas, uma verdade convencionada. Já Górgias entendia que a retórica persuade incitando os sentimentos, uma espécie de encantamento, de magia, de poder divino, conduzindo o indivíduo à semelhança da força do Destino, no final das contas, para uma crença, uma fé.

Sofistas houve que pensavam que os deuses foram criados pelos políticos para dominarem o povo, outros que a Justiça foi criação dos poderosos, outros que é justo que os fracos sejam dominados pelos mais fortes. Em Hípias,   que valorizava o estudo da natureza porque lhe parecia  contribuir para melhorar a conduta humana, mediante a lei natural  que congrega os homens, enquanto a lei positiva os desagrega, deparamo-nos com o germe de pensamento igualitário e cosmopolita. Antifonte, por sua vez, advoga a igualdade natural dos homens.

O século V AEC é também o século de Sócrates, que, é claro, foi discípulo dos sofistas, os notáveis primeiros mestres profissionais da História, os mestres do pensamento livre e democrático, a primeira turma de docentes profissionais da civilização ocidental, da civilização contemporânea, discípulo que abriu divergência com o magistério de seu tempo. Sócrates nada escreveu. E esse fato me parece amplamente coerente com o seu pensamento de que a sabedoria não é um bem que se fabrique, se adquira e se possa transmitir a outras pessoas. O conhecimento é um processo pessoal e interior, uma introspecção inesgotável, um caminhar interior em que cada passo é um encontro interior com a Verdade que, a mesma, se aloja no íntimo de cada pessoa. O mestre, pois, não ensina a Verdade, ele apenas auxilia o discípulo a realizar a atividade que promove o encontro com a Verdade.

Sócrates, pois, ao contrário dos sofistas, entendia que o homem pode alcançar a Verdade, emitir juízos verdadeiros, e que essa Verdade existe em todos os homens, de forma que é possível a concordância universal dos indivíduos humanos, a convivência humana harmoniosa, a sociedade humana. Existem a Verdade, a opinião e o erro.

Sócrates acreditava que nele habitava um daimon, um deus protetor, e que este lhe havia comunicado, peregrino do templo de Apolo Delfo, que a inscrição “Conhece-te a ti mesmo”, aposta na entrada do templo, continha a missão que Apolo Delfo lhe confiara realizar na vida: conhecer-se a si próprio e fazer que as outras pessoas se conhecessem a si próprias.


A missão divina de Sócrates consistia em saber e difundir que a sabedoria reside na vida racional. Sócrates fincou as bases de racionalidade que sustenta o portentoso arcabouço da cultura e da civilização ocidental e da contemporânea.