Protágoras
viveu no século V AEC, o século de Péricles, cerca de 70 anos. Não era
ateniense. Nasceu na cidade grega de Abdera, na época das guerras contra os
persas, e faleceu anos antes do armistício de Atenas com Esparta. Era um sofista,
professor de retórica. Era um profissional da oratória, profissão, naqueles
tempos, muito requisitada pelos cidadãos atenienses.
Com
efeito, como explica Marilena Chaui, apoiada em estudiosos da sociedade
ateniense naqueles tempos, a transformação experimentada por Atenas, naqueles
três séculos decorridos entre Tales e Protágoras, fora tão profunda que até
substituíra o ideal do guerreiro belo e corajoso pelo do bom orador. A
excelência não mais consistia na coragem, mas no poder de convencer. A
aristocracia não mais era a plutocrata, mas a meritocrata. O aristocrata não
mais nascia, a aristocracia não mais herança era, não mais terra era. Agora, a
aristocracia passara a ser adquirida, o poder de influenciar na sociedade, o
poder de falar, de pensar, de comunicar-se, de argumentar, de debater, de
convencer, de persuadir. Agora, todos nasciam iguais. As diferenças, a
excelência, passaram a ser adquiridas.
A
retórica, a oratória, pois, tornara-se preciosa mercadoria na cidade de Atenas,
para onde, assim, convergiam os sofistas de todo Mundo conhecido, os
professores da arte de argumentar, atraídos pela vida social da cidade e pela
remuneração da profissão. A atenção dos filósofos, portanto, ampliou-se para
além da explicação da Natureza. Alargou-se para abarcar e focar principalmente
a palavra, a argumentação, o discurso, o pensamento, o homem, a lei e a
sociedade. Os sofistas, afirmam Reale e Antiseri, interessavam-se pela cultura
(a linguagem, a retórica, a arte, a educação, a política, a ética e a
religião).
Os
sofistas foram tocados profundamente
pela constatação das múltiplas respostas apresentadas pelos filósofos
Naturalistas à indagação do princípio, da natureza das coisas. Percebiam a
diversidade de costumes e leis existentes nas cidades que percorriam e povos
que conheciam, no decurso da vida de andarilhos do magistério, que adotavam. Entendiam
que cada pessoa tinha sua percepção própria das coisas e sua maneira própria de
conduzir-se na vida. Professavam, pois, a doutrina do Relativismo: inexiste
Verdade absoluta, só existem opiniões, mais ou menos verossímeis, mais ou menos
oportunas, convenientes e úteis.
O
mais ilustre de todos os sofistas foi Protágoras. Nasceu em Abdera. Viajou por
quase todas as cidades da Grécia. Lecionou em Atenas. Foi amigo de Péricles.
Evadiu-se de Atenas, após condenação por impiedade e ateísmo. Morreu em
naufrágio numa viagem para a Sicília. Eis como Platão, em Tieto, expõe o
pensamento de Protágoras: “...a verdade é como escrevi: cada um de nós, de
fato, é medida das coisas que existem e das que não existem... ao doente parece
amargo o que come, e assim também é para ele, enquanto para quem está sadio é,
e parece o contrário.” Não existe, portanto, o princípio, a natureza, que os
Naturalistas investigavam. “O ser e o não-ser dependem inteiramente de nossas
sensações, percepções, opiniões, ideias e ações... As coisas são ou não são
conforme os humanos as façam ser ou não ser, ou digam que elas são ou não,
segundo o nomos (a norma)”, explica Marilena Chaui. Medir é comparar uma coisa
com outra, tomada como padrão, referência. O conhecimento humano é um juízo,
uma comparação, um ato de medir: é, não é. Conhecer, pois, é julgar (comparar
com uma norma, medir). E qual é, no
juízo humano, o ponto de referência? A utilidade, a conveniência, o interesse
bem como as percepções e sensações humanas, o homem: o homem é a medida de
todas as coisas. E Marilena Chaui
conclui: “Assim, o homem é medida de todas coisas... significa que é por ação
humana que as coisas existem tais como são e que outras não existem, porque os
homens convencionaram, por meio de leis, não admiti-las.”
Sem
a natureza dos filósofos naturalistas, só existe o puro devir. Esse devir
abarca inclusive o próprio homem (aquele o objeto conhecido e este o sujeito cognoscente). Logo, os princípios de
identidade e de contradição carecem de base de validação: o que é pode não ser.
Cada um, pois, tem sua verdade, mesmo que suas opiniões sejam opostas. E a
mestra paulista encerra sua dissertação sobre Protágoras: “As ideias gerais
sobre as coisas (as qualidades opostas, a justiça, o bem, o útil, as leis, os
deuses, as ciências...) são convenções nascidas de um consenso entre os homens
para utilidade da vida em comum e de cada um. Não há saber universal e
necessário sobre as coisas – não há a verdade, apenas opiniões verdadeiras em movimento
e as técnicas nascidas da experiência e da observação para uso e ação dos
homens. A arte retórica e arte política devem persuadir-nos de quais são as
melhores verdades e as melhores técnicas para cada cidade.”
Essa
era, pois, a atividade do sofista, ensinar a argumentar, a tornar um pensamento
verossímil, uma opinião mais verossímil que outra, a transformar uma opinião em
verdade, a fazer atraente ou repulsiva uma ideia, a convencer, a persuadir, a
dominar, subjugar a mente alheia, do ouvinte, do auditório: dominar o povo, comandar
a sociedade pela oratória. Essa ambiguidade de pensamento bem como a
mercantilização do saber alimentaram, com o decorrer do tempo, grande oposição
aos sofistas no seio da sociedade ateniense.
Contemporâneo
de Protágoras foi Górgias, sofista que professava o nihilismo. Viveu mais de
cem anos. Contrapôs-se a Parmênides, afirmando, segundo Sexto Empírico: “nada
existe, se existisse não seria inteligível, e se inteligível fosse não seria
comunicável aos outros.” Nada existe, já que o ser é algo e o não-ser é nada,
logo o ser é algo e nada é, o ser é algo que nada é. Se o ser é nada, entender
o ser é nada entender, logo o ser é incompreensível. O conhecimento
transmite-se pela palavra, que é mero som, logo o que é transmitido não é o
pensamento, muito menos o ser, mas apenas sons. O discurso não coloca o ser na
mente do ouvinte, mas apenas sons nos seus ouvidos. Protágoras entendia que o
discurso, o debate, conduzia ao entendimento, ao consenso, que era, no final
das contas, uma verdade convencionada. Já Górgias entendia que a retórica
persuade incitando os sentimentos, uma espécie de encantamento, de magia, de
poder divino, conduzindo o indivíduo à semelhança da força do Destino, no final
das contas, para uma crença, uma fé.
Sofistas
houve que pensavam que os deuses foram criados pelos políticos para dominarem o
povo, outros que a Justiça foi criação dos poderosos, outros que é justo que os
fracos sejam dominados pelos mais fortes. Em Hípias, que valorizava o estudo da natureza porque lhe parecia contribuir para melhorar a conduta humana, mediante
a lei natural que congrega os homens,
enquanto a lei positiva os desagrega, deparamo-nos com o germe de pensamento
igualitário e cosmopolita. Antifonte, por sua vez, advoga a igualdade natural
dos homens.
O
século V AEC é também o século de Sócrates, que, é claro, foi discípulo dos
sofistas, os notáveis primeiros mestres profissionais da História, os mestres
do pensamento livre e democrático, a primeira turma de docentes profissionais
da civilização ocidental, da civilização contemporânea, discípulo que abriu
divergência com o magistério de seu tempo. Sócrates nada escreveu. E esse fato
me parece amplamente coerente com o seu pensamento de que a sabedoria não é um
bem que se fabrique, se adquira e se possa transmitir a outras pessoas. O
conhecimento é um processo pessoal e interior, uma introspecção inesgotável, um
caminhar interior em que cada passo é um encontro interior com a Verdade que, a
mesma, se aloja no íntimo de cada pessoa. O mestre, pois, não ensina a Verdade,
ele apenas auxilia o discípulo a realizar a atividade que promove o encontro
com a Verdade.
Sócrates,
pois, ao contrário dos sofistas, entendia que o homem pode alcançar a Verdade,
emitir juízos verdadeiros, e que essa Verdade existe em todos os homens, de
forma que é possível a concordância universal dos indivíduos humanos, a
convivência humana harmoniosa, a sociedade humana. Existem a Verdade, a opinião
e o erro.
Sócrates
acreditava que nele habitava um daimon, um deus protetor, e que este lhe havia
comunicado, peregrino do templo de Apolo Delfo, que a inscrição “Conhece-te a
ti mesmo”, aposta na entrada do templo, continha a missão que Apolo Delfo lhe confiara
realizar na vida: conhecer-se a si próprio e fazer que as outras pessoas se
conhecessem a si próprias.
A
missão divina de Sócrates consistia em saber e difundir que a sabedoria reside
na vida racional. Sócrates fincou as bases de racionalidade que sustenta o
portentoso arcabouço da cultura e da civilização ocidental e da contemporânea.
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