sábado, 30 de dezembro de 2017

403.O Trabalho no Reino de Maquiavel


Maquiavel, quando percebeu o povo insatisfeito e tão intranquilo que já se prenunciava uma rebelião, tratou de promulgar a mais humana e progressista constituição do bem-estar social, através de áulicos que lhe davam a aparência de uma assembleia democrática. Sugerida a aprovação por referendo popular, Maquiavel evitou-o alegando desnecessidade.

Mas, a Constituição lá estava com o seu mais importante mandamento,  o  parágrafo único do artigo 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Nenhum homem governa este país. Este país é governado pela Lei! Até a mais alta autoridade administrativa se submete à Lei. A Lei é feita pelo Povo. A lei é a vontade do Povo. O Povo autogoverna. Este Pais é politicamente liberal: o Povo detém o poder soberano. Nada obstante, exceto duas ocasiões, nunca Maquiavel se dignou permitir o exercício da soberania popular: “Artigo 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: 
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.”

O segundo mais importante artigo da Constituição é o artigo 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Maquiavel sabia que o Povo, portanto, não queria e não quer um Estado equipado com um dispositivo econômico liberal. Ele pretende que o Estado seja dotado de um dispositivo econômico norteado para o bem-estar social, um tipo de desenvolvimento econômico em que todos os cidadãos gozem de bem-estar, tenham condições de conseguir o seu bem-estar (a vida sem dor no corpo e sem angústia na alma): o ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL.
Compare-se o nível de vida e a exibição de pompa de qualquer habitante das centenas de palácios de Brasília, de capitais de Estado e de sedes de município com a modéstia de hábitos da comandante dos destinos da rica Alemanha, e é flagrante a constatação de que a realidade é governada por normas de conduta à margem dos comandos constitucionais. Atente-se para o panorama atual das atividades da justiça e da polícia e constate-se que a elite empresarial e política no país é governada por lei antípoda da constitucional. Essa disparidade se vai encontrar, de forma atomicamente explosiva, até nos fundos de pensão do reino, onde a elite de diretores e até funcionários públicos, têm sua gorda remuneração municiada pela contribuição até de assistidos que, muitos deles, nem lhes cobre as básicas necessidades da vida.  

A terceira mais importante lei constitucional é o artigo 193: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.”
Este é o mais curto artigo da constituição, artigo que é um capítulo! Um artigo que não vejo ser analisado pelos autores de livros didáticos do Direito!

O primado do trabalho, o trabalho é mais importante que o capital, porque ele é que acumula o capital e promove o lucro que forma o capital. O trabalho é que cria o capital. O trabalho humano é que preserva a vida, defende a vida , prolonga a vida, ameniza a vida e aperfeiçoa a vida de forma tal que a torna fruível e digna de ser vivida.  O homem moderno, ao contrário do antigo que preferia a morte à vida, e até preferia não ter nascido, entende que nascer é um bem tão grande que o concebe ser um  direito do próprio embrião humano! Se o embrião humano tem o direito à vida, essa vida a que tem direito só pode ser uma vida digna (sem dor no corpo e sem angústia na alma), uma vida feliz. É inconcebível o direito à miséria, à privação, à desgraça, a nada! É isso que significa o primado do trabalho.

Mas, não é isso que de fato ocorre no reino de Maquiavel. A Constituição manda (artigos 6º e 170-VIII) que todos os cidadãos hígidos trabalhem, mas na realidade treze milhões procuram emprego e não encontram, enquanto umas três dezenas nem emprego mais procuram porque de tanto procurar e não encontrar, desistiram dessa procura do inexistente, conformados com a miséria de uma existência ao nível de uma assistência estatal  básica e precária do Bolsa Família.

Maquiavel, apesar de tudo isso, estimula a substituição do emprego pela mecanização da produção, sob o plausível argumento da eficiência e produtividade, mas sem preparar a população para outro tipo de sociedade e trabalho, nem mesmo proteger o trabalhador da desumana atividade dos trabalhos automáticos, repetitivos, depressivos e incapacitantes a médio prazo. Enquanto isso, em Abu Dhabi, no reino tribal e liberal dos Emirados Árabes Unidos, o governo constrói o mais luxuoso metrô do universo, onde só se viaja sentado, não em assento qualquer, mas em luxuosa poltrona, e que funciona sem um único trabalhador, sem motorista, sem bilheteiro, sem fiscal, com prestação de serviço gratuito. Não se pode entender de outra maneira, ante todas as premissas acima: a substituição do trabalho humano pela máquina só faz sentido, se o serviço por ele prestado se tornar melhor e menos oneroso para o homem.

O artigo 170-VII da Constituição de Maquiavel determina: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, (observado o princípio da) redução das desigualdades regionais e sociais. Diz-se, entretanto, que  a realidade seria exatamente o oposto: apenas seis cidadãos conseguiram acumular patrimônio em valor equivalente ao de 100 milhões de seus cidadãos outros. Nada obstante, o parágrafo quarto do artigo 173 ordena precisamente o seguinte: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. E, em determinada época, sem referendo nem plebiscito, como é praxe no Reino de Maquiavel , eliminou-se o artigo original da Constituição, que limitava a taxa de juros no teto de 12% a. a., considerando o excesso crime de usura, ensejando-se destarte a escandalosa prática atual de juros às taxas de 100% a.a, 200% a.a. e até 400% a.a.!

A partir de certa época do Reino de Maquiavel, ao invés de ajustar-se uma lei antiga, editada numa época de sociedade economicamente mais liberal, à Constituição de Maquiavel, passou-se a utilizá-la para enfraquecer os robustos princípios protetivos do direito contratual, relegando as cláusulas de realização futura à mera situação de uma expectativa de direito. Isso foi utilizado nos tribunais do reino de Maquiavel sobretudo para o enfraquecimento dos direitos do trabalhador, todos eles de realização futura!


Não é para se admirar que o clima social no reino de Maquiavel se tenha tornado por demais intranquilo e incerto, já que de fato, ao que parece, o lema da bandeira nacional também se converteu num instrumento de política maquiavélica: A fraternidade por motivação, a ordem por base e o progresso por objetivo!

domingo, 24 de dezembro de 2017

402. Economia e Estado


Não sou economista. Sou apenas um curioso, em matéria de Economia. Nada obstante, estudo Economia, desde o ano de 1970, quando Cesar Dantas Bacellar Sobrinho me indicou, com quinze anos de Banco do Brasil, e apenas no meio da carreira de funcionário do Banco, para Gerente da Carteira de Câmbio, e o Presidente Nestor Jost hesitou nomear-me: “Bacelar, há tantos chefes de seção no Banco e você indica para gerente da mais importante Carteira do Banco um funcionário de meio de carreira?!” Bacelar não desistiu: “Meu candidato é esse. Você é o Presidente e nomeia quem achar que é competente para o cargo.” Nestor Jost deixou-me três meses como gerente substituto, para então nomear-me. Levou-me até a um périplo pela África para conhecer-me. Acho que um parecer, contrário à opinião dele mesmo, sobre um empréstimo internacional, foi decisivo!...

Possuo e estudo uns dez livros de curso de Economia de professores norte-americanos, entre eles os de Paul Samuelson, Paul Krugman e N. Gregory Mankiw. Possuo exemplar, e os li, dos 50 mais famosos livros da História da Economia. Entendo que aprendi uma lição: Economia não ensina a escolher a melhor organização de sociedade e de Estado. Economia apenas explica por que a economia de mercado, isto é, a economia que aí existe, subsiste e, apesar das deficiências, é capaz de prover a subsistência da Humanidade e promover a riqueza, isto é, a produção de bens, o progresso.

É isso que entendo Paul Krugman tenta transmitir nestas expressões do capítulo 13 (Eficiência e Equidade) do seu livro de texto escolar: “E se as escolhas reais são limitadas a A (eficiência) ou C (ineficiência)? Você deveria preferir, como eleitor, as eficientes políticas...? Não necessariamente... Como dizem os economistas, muitas vezes vale a pena trocar menos eficiência por mais equidade, mas não é sempre. Portanto, é importante recordar o que a eficiência não é. A eficiência não é um objetivo em si mesmo, para ser perseguido à custa de outros objetivos. Ela é apenas uma maneira de alcançar nossos objetivos mais efetivamente, quaisquer que sejam esses objetivos.”

Assim, outras são as ciências que iluminam a Humanidade nas decisões sobre a escolha de seu destino, sobre a sociedade e o Estado em que deseja viver: Sociologia, História, Antropologia, Biologia, Ciência Política, Ciências da Natureza.

O que diz a História a esse respeito? Que desde os primórdios das sociedades civilizadas o homem pretendeu viver numa sociedade fraterna, onde o forte usasse o seu poder, não para escravizar o fraco, mas para ampará-lo e nivelar o quanto possível as condições de vida de todas as pessoas: civilização  sumeriana e código de Hamurabi.

A civilização grega, cujos princípios embasam a civilização contemporânea ocidental, que hoje exerce influência até sobre as grandiosas civilizações chinesa e indiana, nos seus primórdios, a era homérica, admitia que todos os homens eram de origem divina, filhos da grandiosa cópula dos deuses Urano (o Firmamento) e Geia (a Terra), irmãos, de segunda classe, é verdade, dos próprios deuses do Olimpo! A reforma de Sólon e a de Clístenes criaram uma sociedade de cidadãos que, em conjunto, redigiam as leis que os governavam.

O Cristianismo de Paulo de Tarso conquistou Roma, a mãe do Imperador e o próprio imperador, com a mensagem revolucionária de Jesus Cristo “Amarás o Senhor teu Deus, com todo o coração... e amarás o próximo como a ti mesmo.” (Mateus, 22-37 e 39), replicada noutras expressões instrutivas aos cristãos de todos os tempos: “Ora, vós sois o corpo de Cristo e cada um como parte é membro. (Epístola aos Coríntios, 12-27)...Ainda há mais, os membros do corpo que mais fracos nos parecem, são necessários (Ibidem,12-22)...Ora, Deus dispôs o corpo dando maior decência ao que dela carecia, a fim de que não houvesse divisões no corpo, antes todos os membros se preocupassem por igual uns com os outros.” (Ibidem,12-24e 25)

Santo Agostinho, o maior dos Padres da Igreja Ocidental, cujo pensamento orientou a civilização ocidental ao longo de um milênio, fundava a sua crença na Providência divina nestes pensamentos: “Por este motivo Deus está acima de toda forma, acima de toda ordem. E está acima não pela distância espacial, mas por uma potência inefável e singular da qual deriva toda medida, toda forma e toda ordem.” (Natureza do Bem) E este Deus é Ser, Verdade e Amor, as marcas da Trindade divina impressas na natureza humana. (Natureza do Bem e Tratado das Ideias.) Gregório Magno, o grande difusor do cristianismo romano agostiniano pela Europa, ecoava o pensamento do sábio africano: “A nossa honra é a honra de nossos irmãos; e, então, verdadeiramente somos honrados, quando a nenhum deles se nega a honra que lhe é devida.”(Citado na encíclica de Pio XII, O Corpo Místico de Cristo)

O Iluminismo racionalista, que hoje embasa a civilização ocidental, com espaço econômico regido pela economia de mercado, contagiou de tal forma as portentosas civilizações chinesa e indiana, que se constata a prevalência de seus valores na orientação de toda a Humanidade. E essa civilização ocidental contemporânea não abdicou do valor multimilemar da unidade humana e adotou por lema a famosa tríade: Liberdade, Igualdade e Fraternidade!

Essa é a tríade de valores fundamental da civilização contemporânea, que Herbert Spencer, com a filosofia da seleção natural (os ricos sobreviverão e os pobres extinguir-se-ão), e Nietzsche, com a valorização do Superhomem, tentaram demolir. A Civilização contemporânea é claramente uma civilização epicurista: corpo sem dor e alma sem angústia. A Filosofia e a Psicologia constatam que  homem é um ser que se constrói.  A Psicologia constata que o homem só é feliz quando se realiza num projeto existencial com dimensão social: a sociedade feliz é um arquipélago unido por pontes, por infinitas pontes!

Essas ideias reforçaram a política do bem-estar social, iniciada por Bismarck, que se propagou pela Inglaterra, introduziu-se nos Estados Unidos com o New Deal de Roosevelt e culminou com o Plano Beveridge inglês de exterminar os cinco grandes males da sociedade: a escassez, a doença, a ignorância, a miséria e a ociosidade.

A República Brasileira, liderada por ilustres próceres positivistas, colocou na bandeira nacional parte da famosa síntese comtiana de uma sociedade cientificamente operante: “O amor por princípio. a ordem por base e o progresso por fim.” A sociedade brasileira é uma sociedade fraterna. Dessa fraternidade brota a ordem, sem necessidade de esquemas de policiamento, da ordem, isto é, a fraterna e democrática organização da sociedade, brota o progresso.

É isso que o Povo Brasileiro promulgou como sua norma constitucional, com base no valor supremo da dignidade da pessoa humana (Artigo1º-III): um Estado republicano, democrático do bem-estar social.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: 
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: 
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.

 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. 
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
 TÍTULO VIII
Da Ordem Social
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÃO GERAL
 Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Essas são as premissas deste texto. Essas são as orientações fundamentais que devem guiar, na minha opinião, qualquer Governo que se assente em Brasília. Governo que entenda que essas normas constitucionais estão ultrapassadas, não pode alterá-las sem a consulta direta ao Povo, o detentor do poder soberano (artigo 14). Entendo que, não o fazendo, comete um ato inconstitucional, ilegítimo e nulo. Trata-se de um ato ditatorial.

Alega-se que o País está com grave problema financeiro: os recursos não cobrem os compromissos, há anos, e a dívida bancária cresce permanentemente. Mas, o país não tinha uma lei de responsabilidade fiscal? Não havia tribunais de contas? Ninguém percebeu esse grave crime generalizado contra o País, cometido pelos mais altos gestores do Estado? Eles foram responsabilizados? Como chamar o povo para pagar a conta, se os responsáveis não o foram e até continuam a perceber generosas remunerações?!

As contas que estão apresentando ao Povo, consultaram ao Povo, se ele consentia fazê-las? Perguntaram ao Povo se ele queria manter um Presidente com três palácios, um para trabalhar, outro para habitar com a família e outro para relaxar no fim de semana, tudo isso com séquito de servidores civis e militares altamente remunerados, além do sustento normal, frequentes banquetes e cartões de crédito de valor sigiloso?

Consultaram o Povo sobre o custo de trinta e tantos ministérios, um milhar de legisladores e milhares de servidores altamente remunerados? Esses legisladores se transferem para Brasília com séquito de assessores e famílias! Será que nos tempos modernos isso se justifica?! Há uma quantidade grande de Tribunais em Brasília: STF, STJ, TFE,TC, TM etc. Consultaram o Povo sobre a criação desses tribunais, sobre os critérios de remuneração? Não. Como agora querem simplesmente apresentar a conta para o Povo pagar?

Estenda-se isso para os Estados e para os municípios. A conta certamente é altíssima. O conhecimento do Povo é dela ferrenhamente afastado na hora de fazê-la, mas, sem a menor cerimônia, a montanha de dívida é-lhe apresentada na hora de pagar!

Se o Povo é que sustenta o Estado, o Povo tem, sim, todo o direito de fixar a quantia que o Governo pode gastar. É pelo Governo que devem começar as reformas, na minha opinião.







                               

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

401. A Democracia no Reino de Maquiavel.

Em tarde de dia incerto da semana, o venerando sacerdote, sacola ao ombro, onde portava o livro das lendas do Reino de Maquiavel, saía correndo à frente dos cinquenta adolescentes apostólicos jesuítas pelas trilhas do chão generoso do morro da Cruz ou do morro da Caridade, da serra de Baturité, onde aqui e ali saltávamos por sobre serpentes que cruzavam nossos caminhos, para estancar, quando já cansado, sentar-se numa saliência rochosa à sombra de árvore frondosa e, recostado no robusto tronco, ler capítulos da obra literária.

Naquela tarde, ele nos leu o episódio da proclamação da última constituição outorgada por Maquiavel, rei violento e farsante, ao seu povo. A solenidade da outorga constitucional ocorria, após meses de apaixonados debates de representantes do povo, que haviam proposto ao rei o mais avançado texto constitucional da época.  Até democracia direta prescrevia, na forma de plebiscito, referendo e iniciativa popular. Com tudo isso o rei Maquiavel aquiescera, com o intuito de aplacar a revolta popular que já ameaçava repetir o desastre real da Bastilha, conduzindo-o ao cadafalso.

Numa tarde memorável, o povo maquiavélico assistiu, inebriado de orgulho patriótico, ao rei alçar por sobre a cabeça e agitar com simulado orgulho a que ele apelidou de constituição cidadã, constituição democrática do bem-estar social.

Acontece que anos, dezenas de anos se passaram, as mais importantes reformas se processaram, como a trabalhista, a previdenciária, a educacional.  Tudo isso que, num país comprometido com a respeitabilidade, a honorabilidade e a lealdade, deveria ser promovido diretamente pelo povo, tudo isso foi realizado segundo os planos pessoais do próprio rei, deliberadamente sem a manifestação direta do povo, num vasto e encoberto mercado de concessões de favores políticos, onerosos para o já combalido erário régio, negociados durante ágapes para dezenas de participantes, nos três palácios de sua alteza, o de trabalho, o de residência e o de descanso nos fins de semana.

O ladino rei Maquiavel sabia que o povo queria que as reformas principiassem por ele e seu séquito de espertos e parasitários companheiros do restrito círculo da elite do Poder político. O Povo não mais suportava sustentar um rei com três palácios para viver e ágapes generosos e requintados diários para dezenas de improdutivos convivas. O Povo se sentia explorado por uma classe de excessivos representantes, quase mil, tão ignorantes que exigiam dezenas de assessores e acomodações luxuosas que só produzia leis em benefício próprio ou das classes exploradoras das necessidades populares, como aquelas que cobravam juros de 200% ao ano emprestando dinheiro que guardavam de graça ou tomavam emprestado do Banco Central a 7% a.a. O Povo não mais aceitava sustentar população de milhares de pessoas que periodicamente mudavam de residências para as capitais do reino, de suas províncias e de sedes de municípios com familiares e assessores, com os mais diversificados benefícios altamente gravosos, alguns deles vitalícios, para nada produzirem em favor do progresso do reino e do bem-estar da população. O povo sentia choques de revolta ao perceber o desbunde de ostentação, quando confrontava o comportamento frívolo e vaidoso dos representantes do reino com o dos estrangeiros nos conclaves intergaláticos! O Povo já não mais tolerava assistir a juízes desperdiçar horas altamente remuneradas em exibicionismo intelectual, quando as justificativas jurídicas de sentenças poderiam ser restritas a mero resumo claro e objetivo da argumentação, em palácios espalhados pela vastidão do reino, abrigo de legiões de assessores, população remunerada de forma misteriosa. O povo chocava-se com todas aquelas pretensas reformas, porque lia na constituição régia que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e se destina a assegurar a toda a população existência digna, justiça social e pleno emprego, e energicamente ordenava a repressão do aumento arbitrário dos lucros! Estupefato ficou o povo, quando, em certa época, notou que a constituição não mais limitava a taxa de juros a 12% a.a., nem  mais considerava taxa excedente crime de usura!

Iniciara-se a Era da Informação. O Povo despertava. O Povo entendia que cada ser humano é uma singularidade que quer ser feliz na vida e que só pode ser feliz – viver sem dor no corpo e sem angústia na alma - realizando a sua singularidade numa fraterna convivência com os outros, como a Humanidade aprendeu com Erich Fromm. Eric Fromm é Humanidade. Nietzsche é loucura. O super-homem é ditadura. O liberalismo econômico é revolta e suicídio. Herbert Spencer é fascismo e nazismo.


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

400.No Reino de Maquiavel


Venerável sacerdote italiano, meu professor sábio e compreensivo, no solo vasto, límpido, generoso e lindo da Serra de Baturité, no estado do Ceará, apreciava contar histórias sobre um reino que existiu em alguma parte do Universo, o Reino de Maquiavel, um reino regido sob o império da violência e da farsa.

A Constituição fora redigida pelo próprio rei, mas o rei convencera a população de que ela própria a elaborara, contendo, pois, a vontade soberana do Povo, uma constituição democrática.

O rei nela outorgou-se, com enorme, suntuoso e festivo aparato a missão de Protetor do Povo. Ele se obrigava a elaborar todas as leis com a finalidade de promover o bem-estar do Povo e a proferir todas as sentenças do Tribunal no interesse do Povo. O principio fundamental do reino era o interesse do povo. A meta da sociedade era que todos os cidadãos vivessem sem dor no corpo e sem angústia na alma!

Tudo isso o rei de Maquiavel estabeleceu no reino, na verdade, tão só para se livrar da pressão interna do Povo e da pressão externa dos outros Estados que já se haviam humanizado, civilizado, guiando-se pela ideia de que povo feliz, sem dor no corpo e angústia na alma, é povo trabalhador, criativo, eficiente, progressista, realizado e pacífico. A vida é uma festa e a Terra é um paraíso.

Certa vez, em razão das muitas rapinagens que o rei Maquiavel e seus comparsas haviam solertemente praticado, a situação do reino, uma das terras mais férteis e ricas do Universo, havia chegado a tanta degradação que o reino não mais possuía recursos para sustentar-se e era mantido às custas de empréstimos que estavam na iminência de estancar, porque os credores já não mais confiavam na capacidade de pagamento do reino.

O rei Maquiavel, então, convocou o povo e lhes dirigiu eloquente discurso, descrevendo a trágica e iminente ameaça da falência do reino, imputando a situação aos grandes gastos com o programa do reino, “sem dor no corpo e sem angústia na alma”, previdência social e saúde do povo, hospitais.  Disse-lhes que ia substituir a previdência por poupança de reponsabilidade pessoal, que era uma coisa maravilhosa, dava até para o indivíduo passear no estrangeiro durante uma aposentadoria que se estenderia por décadas. Já a saúde, ele a confiaria, com todos os recursos necessários, fornecidos em valor paritário entre ele e o povo, à exclusiva supereficiente administração do povo, tão integralmente, que doravante cessaria toda a sua contribuição financeira para o fundo de saúde.

Esse discurso do rei Maquiavel passava ao largo, tentando ocultá-lo ao Povo,  do fato de que ele permitira solertemente que no reino somente seis cidadãos detivessem riqueza equivalente à de outros cem milhões de cidadãos... Ele pretendia resolver o problema do reino com a fome e a morte de cem milhões de pessoas,  e a proteção do patrimônio integral dos seus seis amigos íntimos.